sexta-feira, setembro 17, 2010

Vidas suspensas

Primeiro, as veias estavam entupidas. Depois, a falta de ar, a fraqueza, as ideias confusas. Então, veio lá o estômago ferido, sangrando. Uma cauterização resolve, disseram. Mas, agora, é o sangue ralo, que não se reproduz, o problema.
E ele reaje. Ao modo dele, mas reaje.
Está cheio de problemas, e ainda lhe faltam a paciência, a resignação, a quietude. Ele se enfurece.
E ele não está errado, está?
Como deixar de brigar, de aceitar a maca se sua vida toda foi de liderança?
Como ser paciente agora se ele sempre fez tudo primeiro, na frente, rápido?
Mas, agora, tudo tem que esperar. É como se nossas vidas estivessem suspensas...

E, então, como a quietude agora é obrigatória, um comprimido, uma dose de sedativo, seria a solução.
Mas para ele não é.
Ele até dorme, mas quando volta, mesmo zonzo, se debate, quer arrancar o soro, sair de lá.
Como um bêbado, caindo, sem se aguentar sobre as próprias pernas, e nem sobre o próprio tronco, ele me diz, como se reclamasse do atendimento de um restaurante: "Filha, nunca mais volto aqui!". Ou "Filha, vou levantar porque tenho que buscar sua mãe!"
E eu o coloco de novo deitado. 80 quilos de pele e osso. Meu corpo inteiro dói. E todo dia sinto como se já tivesse vivido isso. É um 'de javu' atrás do outro.
Até quando? Ele resiste? Eu resisto? Tudo que me dizem é "você tem que ser forte". E eu estou cansada de ser forte. Até quando eu tenho que ser forte? Será que tem alguém que pode ser forte por mim?
E é inevitável pensar no futuro.
Porque, depois disso, seja o fim que tiver tudo isso, nossas vidas não serão mais iguais. A vida deles aqui vai mudar. E a minha longe daqui também.
Se sobrevivermos ou não, depois disso, temos que pelo menos mudar o modo de pensar e de agir na vida.
E, enquanto isso, temos que aceitar que nossas vidas estão mesmo suspensas.
Pra repetir um clichê, eu queria acordar e perceber que tudo foi só um pesadelo.
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sábado, setembro 04, 2010

Pai e mãe

Eles agora estão mais frágeis, e isso me assusta. Ela me diz que ele fala coisas sem nexo, vê uma casa duplicada, dorme fora da hora e fica alerta na hora de dormir. É a idade, eu sei. Ele, que sempre foi forte, agora cambaleia, chora, olha para o nada. E ela, que sempre foi mais dependente, tem que criar forças que nem ela mesma sabe que tem.
E eu, aqui de longe, posso fazer o quê? Dou conselhos, digo que é uma fase, ele está doente, vai passar. Mando dinheiro, peço para eles voltarem, vou até lá de vez em quando, mas a vida nessas horas é tão madrasta que, no momento que eles mais precisarem, que é inesperado, como eu poderei estar lá? Como vou poder adivinhar? E foi uma escolha deles passar a velhice lá, num lugar tão distante...
Tudo que sei é o que os dois me contam, e nem sei se me contam tudo o que eu preciso saber. E nem sei se eles sabem exatamente o que acontece com eles. Isso é que é mais assustador. Eles também não sabem...
E não é só medo que tenho. Fica junto um outro sentimento que eu nem sei dar nome. É um tipo de pena, de melancolia, saudades pelo que os dois já foram e que agora não aguentam mais ser e uma necessidade de se conformar com o ritmo da vida. É a vida... infância, juventude, maturidade, velhice... Ela vai chegar. E ele sabia disso, porque sempre me disse que a velhice dele ia acontecer.
Mas, de uma forma ou de outra, os dois sempre estiveram por aí. Agora, com ele doente, parece que fica concreto o que ele sempre falou por hipótese... que um dia não estará.
E eu aqui, sem poder mudar o rumo das coisas...

;-)

PS - Há 11 anos Heloisa partia.

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