domingo, dezembro 31, 2006

A melhor parte chegou

Foram apenas 30 minutos da minha casa até o jornal.
A cidade vazia é a melhor parte desse plantão.

Enfim, 2006 acabou. O fim de ano chega tranqüilo, de um jeito que nem pude vislumbrar há alguns meses. Está como praia no fim de tarde.

Nada como o tempo mesmo para transformar situações, consolidar sentimentos e fortalecer convicções. E nada melhor do que ele para limpar a neblina que às vezes insiste em atrapalhar a nossa visão.
Os sentimentos continuam vibrando, como no início de 2006.
Mas o coração está pacificado, leve.

Escrevo aqui o que estou pensando, nessa solidão que é o Réveillon em um plantão. Solidão, mas com muita gente em volta. Pessoas sem vínculo para comemorar datas especiais, mas unidas por um osso imposto pelo trabalho. Faz parte.

E escrevo sem compromisso, como num confessionário. Como que sussurrando algo, que só eu escuto.

Não tenho desejos ambiciosos para 2007.
Mas quero muito continuar a me surpreender a cada dia. Comigo e com o mundo.

E, numa daquelas certezas esquisitas que às vezes sinto, sei que 2007 vai ser melhor que 2006.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Pós-Natal

Parece até milagre esse vento gelado batendo no meu rosto...
Preciso desse ar que diz que a serra está próxima, e o mar logo ali.

O calor infernal ficou para trás.
As tardes empapadas de suor, eu jogada num canto da casa íntima, porém estranha.

Membros inertes, cabeça pesada e confusa, ócio até saudável,
Mas que desesperadamente eterno!

Adoro essa terra!
Chego aqui e me delicio com o barulho na rua,
Com as milhares de luzes amarelas e brancas,
Com os prédios enormes, lindos e feios,
Com as construções bizarras,
Com os outdoors, os luminosos,
Com confusão diária da minha vida comum.

No meu quintal, de madrugada,
Respiro fundo, fecho os olhos e levito com o cheiro de biscoito.
Abro os braços, estou aqui.
Estou em casa.

domingo, dezembro 10, 2006

Ardil - Red Rose

A rosa era vermelha. Estava encaixada na persiana da janela onde ela havia dormido aquela noite. A janela era de madeira, daquele tipo que se usava nas casas antigas e que hoje em dia já não se encontra mais. E estava pintada de azul.
A flor vermelha se destacava de longe.
Quando a menina acordou e abriu a janela encontrou lá a rosa roubada, rubra, sua favorita. Nas folhas verdes, declarações de amor escritas com caneta fina preta. “Rosa de amor só vale se for roubada”, ela havia dito a ele na noite anterior.
E ele fez o seu capricho. Pulou o muro da casa da vizinha, baixo, feito mesmo para ser pulado, e arrancou a rosa, sem antes se machucar com seus espinhos.
E a deixou feliz.
A menina da metrópole se encantou com esse costume do interior. E, até por ser da metrópole, lhe choviam pretendentes. E ela decidiu namorar o que cumprisse o ritual. E ele cumpriu. A risca. “Meu amor, minha flor, você é tudo, você é linda, você quer ser minha?” Que tudo era aquilo para aquela menina!!! Declaração de amor tosca, infantil até, mas era o máximo naquele momento.
Foi seu primeiro namorado. Seu primeiro grande amor. Ela 15, ele 18. Ela linda, ele tímido. Ela virgem, ele no ponto. Ela da cidade grande, ele do interior.
A paixão foi tão avalassaladora que toda cidadezinha se envolveu. Todos torciam por eles.
O pai na cidade grande se assustou. “Se souber de algo que estrague sua reputação você não volta pra lá”, ameaçou. A parentalha se ocupou de protegê-los. As tias os levavam para as suas casas, não os deixavam namorar nas praças, na escada da igreja, nas esquinas. Os beijos mais íntimos eram dados dentro de saletas, nas varandas das chácaras, longe dos olhos maldosos. “Esse casal é lindo”, diziam, melosos.
Mas as férias acabaram e ela partiu. E ele ficou, prometendo amor e fidelidade eternos, chorando de saudades na porta do ônibus. Meses de namoro por cartas quase diárias eles tiveram.
Mas os hormônios da adolescência não param de ferver. E um dia chegou a carta derradeira: “Desculpe, mas me apaixonei por outra aqui. É melhor terminarmos.”
A traição é um tipo de navalha que entra no coração das pessoas. E foi a dor de uma navalhada que ela sentiu com aquela carta.
Não que estivesse só e fosse absolutamente fiel. Na verdade, já estava com outro na grande cidade, nos bailes de domingo já havia trocado beijos e mais beijos com vários e se sentia bem menos apaixonada do que nas férias. Mas a mulher traída, mesmo a adolescente, é terrível e ardilosa.
Ela chorou uma semana trancada em seu quarto e depois o esqueceu. Só sobrou o capricho que logo logo seria realizado.
Ele, por sua vez, comeu o pão que o diabo amassou na cidadezinha do interior. Filho da terra, se apaixonou por uma filha da terra, grande amiga da namoradinha da grande cidade. Mas nem o amor sincero os redimiram. Viraram traidores. A cidadezinha ignorante os maltratou e eles viraram um casal de parias. Ninguém os convidava pra nada, todos os consideravam traidores da jovem virgem da cidade. Mal sabiam que ela, na metrópole, já não chorava mais. Só tinha a raiva das traídas.
E quando, lá perto de um Natal, ela voltou pra cidadezinha, não sossegou enquanto não o reencontrou. Chegou e foi direto ao baile da cidade, onde todos estariam. Estava linda como nunca. E ele, quando a viu, quase enlouqueceu. E ela esperou até o fim. E ele levou a namorada pra casa. E ela fingiu que partiu, mas ficou lá, à espreita, no portão da casa dele, encostada em uma árvore. E, quando ele chegou, lá estava ela. Cínica, irônica e linda, perguntou chorosa? “Mas, por quê?” E ele não soube responder. Que falsa ela era. Já estava com outro, ou outros, e ele só queria ser feliz na cidadezinha do interior. Mas ela não sossegou até seduzi-lo e arrancar-lhe um longo beijo. Arrancaria mais se soubesse como. Mas ainda era virgem e um tanto inexperiente.
Despedida? Não. Vingança. Ela estava vingada da outra, que um dia tinha sido sua amiga naquela cidade do interior.
Ela dormiu feliz aquela noite. Seu sono foi profundo. Ele não dormiu. Sua consciência pesava. Como são bobos esses rapazes... Até hoje sua consciência pesa por causa daquele beijo no meio da madrugada na frente do seu portão.
Vinte anos se passaram. O casal foi perdoado pelos da cidadezinha. Se casaram em grande estilo, tiveram filhos lindos. Ele tem um bom emprego, a mulher cuida da casa. Ele vive a vida dos homens justos e normais, sem sustos ou aventuras. Parecem felizes.
Ela teve vários homens, se divertiu pela vida, rodou o mundo, mas um dia também cansou e resolveu arriscar a normalidade. Casou e teve filhos. Enfim, sossegou. De vez em quando, volta à cidadezinha e o encontra por acaso, em alguma esquina, na casa de algum parente. E ela ainda se diverte, porque até hoje ele não tem coragem de encará-la como alguém comum. Talvez a vergonha da traição, talvez o medo da mulher saber do último beijo, talvez o arrependimento de ter optado pelo comum e conhecido pouco do mundo. Quem vai saber?
Ela já não se importa mais. Mas não consegue vê-lo de longe ou de perto sem desenhar no seu rosto um sorriso um tanto quanto vitorioso.

sábado, dezembro 09, 2006

Poema emprestado

Por estar assim meio silenciada, empresto uma canção que adoro e que diz muito. Quem canta é o Ney Matogrosso. Composição: Cazuza / Frejat.

Poema

Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo e procurei no escuro
Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo
Hoje eu acordei com medo mas não chorei
Nem reclamei abrigo
Do escuro eu via um infinito sem presente
Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim, que não tem fim
De repente a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu
Há minutos atrás

domingo, dezembro 03, 2006

Ele de novo

Eu não faço por querer.
É só que às vezes me toma um silêncio ensurdecedor.
É contraditório porque, lá dentro, as vozes não calam.
O silêncio só se faz pra fora.
Nada sai de casa. Isso me desespera.
Parece que é de novo a paciência a me testar.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Sonho pra San

"Ele pula do penhasco direto pra água. Queria morrer. Ela olha, com o coração na mão. Ele afunda na água e submerge. Desaparece totalmente. De repente, ela vê as solas brancas de seus pés surgirem da água (mas por quê raios pelos pés?). Mas, espere, são dois pares de pés. O outro, é o dela própria. Em câmera lenta, os dois emergem aos poucos do fundo da água, de mãos dadas, e vão sentar na areia branca. E ficam lá, se curtindo. Ela no colo dele." Moral da história: ele afunda, ela vê, ela mesmo o salva e tudo termina como num conto de fadas que a Bia adora. Não combina com a vida, né?

Já que você quer falar de sonhos, vou te contar um sonho meu.
Sabe, não sou de dar muita bola pra sonhos. Ou melhor, de me impressionar com o seu significado, porque não vejo neles premonição, mas desejo, e quando a gente sabe o que quer não precisa deles. Eles às vezes confundem mais do que ajudam.
Mas até que um deles, há um ano mais ou menos, me incentivou a procurar amigos dos velhos tempos e foi bom. Na época, sonhei que voltava para Santo André onde eu fazia teatro, mas ela já não era mais a mesma. Como a vida que muda, a cidade naquele local havia sido 'urbanizada'. O local estava uma beleza, por sinal. Era uma praça arborizada. Nunca saí de Santo André, você sabe, mas pra mim é como se estivesse fora daqui sempre. Acho que é porque estudo e trabalho sempre rolaram fora daqui. Aqui é o meu refúgio noturno, meu lado família, minha parte mais íntima. O público está em Sampa.
Voltando ao sonho: não conhecia mais ninguém, mas quase todos que me viam me conheciam, lembravam de mim. A casa onde ensaiávamos era, no sonho, um tipo de hexágono, com uma sala ao centro e várias salas em volta, todas com portas pra esta sala central. Entrei e fui olhando cada cômodo e perguntando pelas pessoas, que naquele exato momento não estavam lá. E de repente, chegam várias, que eu não lembrava mais, quem eram, mas me conheciam. E me virei e lá estava o meu amigo, bem diferente por sinal. Quase não o reconheci, mas ele abriu a boca, falou algo que não lembro e eu acordei.
O sonho me emocionou tanto que resolvi procurá-lo. É engraçado que, no reencontro, acho que descobri que mudamos todos daquela turma, mas não muito. Lá no fundo, temos todos ainda nossos velhos defeitos, tentando superá-los quando o admitimos, mas também nossas melhores qualidades.
O sonho do sono me parece mais aquilo que queremos do que aquilo que vai se realizar. O sonho acordada me parece mais real, mais perigoso, mas mais prazeroso também. Eu, você sabe, ando sonhando demais. Mas prefiro assim. Sabe, amiga, sempre tive urgência de tudo, mas ultimamente tenho parado pra respirar. A vida me obriga a isto. E sinto que não devo ter mais pressa de nada, mas isso é difícil, porque implica eu mudança profunda. Só não posso parar de sonhar.
Agorinha, colocando a Bia pra dormir, só conseguia pensar no quanto é grande este amor que sinto por ela. Isso parece um sonho e é tão real. E disse que queria beijá-la aos montes e a danada, de olhos fechados, se aproximou ainda mais pra ficar perto dos meus beijos, ameaçando um sorrizinho maroto. É mais que um sonho, não é? É nessas horas que você acha que pode até morrer porque, até agora pelo menos, conseguiu fazer tudo que devia e podia do melhor jeito que sabia. É como o seu Chico lá no seu blog, dividindo sonhos com você.

Bem, se eu morrer hoje, você sabe onde estão os meus segredos e pra quem entregar, ok?
Mas, tranqüila, não vou morrer não. Sou vaso ruim.

Hoje não vamos nos ver, eu acho. Se voltar cedo, a gente toma um café.

Beijos

domingo, novembro 19, 2006

Sem virar o pote

Por quanto tempo a gente consegue enganar o ciúmes? Porque ele é sim o pior sentimento que existe entre dois. Dói e destrói a gente por dentro, se exagerado. Só é útil se vier em doses homeopáticas, até divertidas, mas a tentação de engolir o pote numa talagada só às vezes é muito maior do que a nossa capacidade de ponderação.

E o ciúmes é diferente para cada um. Uma prima tinha ciúmes de qualquer outra mulher que se aproximasse do seu marido. Era como uma doença. Hoje ela está chata e só, e ele está feliz com outra. Não é um bom exemplo.

Tipo Carrie Bradshow, em Sexy and the City, sai por aí outro dia checando como as pessoas sentem o ciúmes. Velha mania de racionalizar tudo. Foi um bom exercício.

Achei um cara casado que curte sexo com a mulher e mais alguém. Ótimo exemplo. Tudo bem desde que fossem duas garotas e ele sozinho. "Outro cara na cama com minha mulher, sei não..." "Mas e se ela se apaixonasse pela outra?", perguntei. Ele nunca tinha pensado nisso e não conseguiu responder. Travou. Acho que deixei ele com a pulga atrás da orelha.

Um casal de amigos aceita a troca de casais, desde que tudo esteja muito transparente. Mas ela tem ciúmes, me contou, um ciúmes sutil. Ela se incomoda quando a outra mulher ou o outro homem não percebem o seu lugar. "Quando eles acham que podem mudar alguma coisa entre nós. Eu e o meu marido, nós nos amamos".

"Tenho ciúmes quando vejo que conversou com outra no orkut, quando outra está perto dele e até dos amigos", disse uma menina que conheço. Isso é doentio, achei. Mas é muito comum.

Eu mesmo senti essas coisas há 20 anos e fugi sem olhar pra trás. Naquela época, eu achava que tínhamos que dar o direito ao outro de ficar com outras pessoas. Mas não tive estômago para aguentar o tranco. Na época, foi o melhor que podia fazer por mim: sair fora.

Ouvi várias histórias, mas a melhor veio de uma figura tranqüila, que aparentemente vive de bem a vida. Nunca imaginei que sentisse ciúmes de alguém. Ela falou assim:

"Eu decidi aceitar o convite pra tomar uma cerveja com eles. Era um desafio e tanto. Eu sabia que ele estaria com a namorada. Fui pensando como me sentiria, quantas vezes me imaginaria subindo no pescoço dos dois. Mas vamos lá, coragem, eu pensava. Você tem que superar, já que só podem ser amigos mesmo. Cheguei e sentei estrategicamente na frente da garota. Estranhamente não senti nada. Ou melhor, sentia pena. A cada palavra que ela soltava eu pensava: o que ele viu nessa mulher. Ela não é nem bonita e nem inteligente. A voz é esganiçada. E as idéias, dispensáveis. Eu olhava pra ela, olhava pra ele, e não sentia onde aquela história se encaixava. Me sentia bem por não ter ciúmes, vitoriosa mesmo. Foi aí que aconteceu o imponderável. De repente, o celular dele tocou. Atendeu e passou pra ela, falando um nome. ‘Oi, meu amor, a mamãe já vai pra casa’, ela disse algo assim. 'Droga', eu pensei! 'É o filho da garota, ligando no celular dele, que droga!' Olha aí, Vivi, foi isso, não tive ciúmes dela logo de cara, mas tive ciúmes daquela situação tão íntima que, com o telefonema, percebi que existia entre os dois. O chão saiu debaixo dos meus pés. O boteco estava fechando, todo mundo indo embora, e eu também aproveitei a deixa. Amiga, entrei naquele carro destruída. Chorei até chegar em casa."
"Mas, baby", eu respondi, "podia não ser nada disso. Vocês já tinham bebido, pode ter imaginado coisas...".
"Eu sei, Vivi, mas é disso que eu estou falando. Eu não sei o que está acontecendo ali".

Concluo que o ciúmes é, mais do que sentimento de posse ou de amor, como muita gente defende, é algo sobre a nossa falta de segurança. Temos ciúmes quando não sabemos o que se passa. O ciúmes vem daquilo que não conhecemos.

Par Perfeito

Que carinho te posso fazer?
É só o da pele que vai lhe bastar?
É só isso que de mim pode esperar?
Pelo sexo você vai sempre me amar?

Eu cada dia mais longe de você?
Você cada dia mais ligado a mim?
Para onde eu posso te levar?
O que vai fazer se eu te deixar?

Você já experimentou pensar em não me amar?

Que carinho você quer me dar?
O café, o almoço, o consolo?
Um filho, a razão, a palavra final?
A casa, o carro, o trabalho?

O que mais posso eu querer?

Um coração para eu me aproximar?
Uma companhia apenas para estar?
Uma memória pra não esquecer?
Uma paixão para compartilhar?

Que caminho podemos nós trilhar?
O vinho, a cerveja, o filme e cada um num sofá?
Juntos e distantes e viciados neste lar?
Para qual final queremos nós caminhar?

Em qual lugar nós vamos parar?
Até onde nós dois vamos aguentar?

terça-feira, novembro 14, 2006

Casquinha

Pena que passou o tempo!
Mas bem que seria bom tirar um do outro aquela casquinha divertida.
Pensamentos safados completamente fora de época?
Tranqüilo!
São só pensamentos, pura imaginação...
Um pouco de fantasia não faz mal a ninguém.
Você, provavelmente, nem vai saber, nem vai me ler.
Mas bem que seria especial.
Te ver sempre me dá saudades e coragem.
Saudades de algo que não chegou a ser, mas que, mesmo assim, foi muito bom.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Passagem

Os pés vibram e com eles todo o seu ser.
Mãos macias os protejem...
Os envolvem...
Deslizam pelas linhas, sulcos, montanhas.
São explorados com delicadeza.
O corpo trepida e se desmancha sob o lençol. Nu.
A mente viaja para um tempo inexistente.
Com as pálpebras fechadas, a visão negra.
A garganta fechada.
Os olhos a traem e desprendem gotas tão salgadas quanto amargas.
Tudo é dor!

sábado, novembro 04, 2006

Isso é Saramago

"O sexo é. Especular sobre a importância e o significado dele não levará a
outra conclusão: o sexo é, e não só é, como tem as suas razões. Não discutamos
com o sexo, ele acabará sempre por ganhar a partida. Às vezes, para justificar
as nossas tentações, dizemos que a carne é fraca. E não se repara que se a carne
cede é porque o espírito já havia cedido antes..."

Não tem nem o que falar. Ele deu uma breve entrevista por correio eletrônico para o Estadão de hoje. Está ótima. Quem quiser ler a íntegra é só checar.

terça-feira, outubro 31, 2006

Esquina


O barulho parecia ensurdecedor. Mas eram só os seus ouvidos. Um caminhão, um ônibus, carros passando pela avenida, movimentos banais como o cotidiano, e ela empurrando o carrinho de sua bebê. Pequena criança.

Decidira dar um passeio com a menina - primeiro passeio - empurrando o carrinho por aquelas calçadas desniveladas e inadequadas. Ela avança insistente até a esquina. Lá, em um metro quadrado, ela se perde.

O que lhe tomou? Que sensação foi aquela? O barulho de dentro era mais forte que o barulho de fora. Ela enxergava os movimentos editados em takes rápidos. Tudo superlativo, como se ninguém a visse e ela percebesse tudo. E se sentiu profundamente só.

No carrinho, a nenê não chorava, mas a olhava de um jeito estranho, como uma estrangeira pedindo auxílio. Ela não conseguiu avançar. Dava passos desconexos, olhava para o alto e para os lados como uma alucinada e tudo que conseguiu fazer foi recuar e fugir empurrando às pressas o carrinho de volta pelo caminho.

Por que aquela sensação? Aquilo era um assombro que durou eternos segundos, e era muito maior que ela. E olha que naquele momento ela ainda não sabia... Ela realmente não imaginava. Mas, talvez, ao seu coração, a mensagem já estivesse dada.

O que viria?
Viria o mal congênito,
o medo,
a dúvida,
a luta,
a dor,
os vômitos,
os olhares de pena,
os exames,
as febres,
os cavalos,
os aparelhos,
os parabéns em meio a lágrimas,
a esperança
e a morte*.

Mas naquele dia, naquela esquina, no meio da fumaça, ela ainda não sabia.

Depois da morte veio o trabalho, o trabalho e o trabalho. E a obrigação auto-imposta de consolar os outros. Ela não podia esmorecer. Não podia fraquejar. Porque, se ela caísse, nada sobraria atrás de si, acreditava.

E ela continuou. Não parou nunca. Nem outra filha, maior dádiva, a fez parar. Tudo tem que estar certo, no seu lugar, contas em dia, geladeira cheia, casa limpa, sem respirar, não olhar pros lados, continuar. A perfeição é a meta sem que se saiba.

Não há poesia, não há música, não há leveza, nem amargor, apenas o que há e o que tem que se cumprir. Até com uma certa alegria, arremedo de felicidade.
Mas ela não é assim. Ela se fez assim.
Até que a vida a chacoalha e lhe coloca de volta na terra. E ela retorna para ela. Para o seu interior. E, lá dentro, ela encontra com o desconhecido, se impressiona com o seu próprio tamanho, vislumbra possibilidades múltiplas e percebe que o peso pode ser menor.
Só há que virar a chave.
É difícil recomeçar, ela pensa. É difícil enfrentar a pior das feras.


*A dor do amor-negado é tão forte quanto a dor da morte.

quinta-feira, outubro 26, 2006

"Come on baby, light my fire"

Nada como ouvir boa música logo cedinho....

quarta-feira, outubro 25, 2006

Viagem na Copa do Mundo

O muro quebrado continua lá. Já são mais de quatro anos. Depois da suave curva à direita, é aquela destruição em formato de triângulo na mureta caiada que separa a pista do Tamanduateí. Que desgraça que é a vida! Tão frágil, tão fugidia.

O garoto se achava o máximo. Carrão novo, shorts, camiseta, naquele junho com sol de rachar como quase sempre ocorre no inverno paulistano. Tudo é sem sentido, esquisito mesmo, até o tempo.

Jogo do Brasil na Copa do Mundo. Ele passa na casa do amigo, lá na Mooca ó meu, e avisa que a galera vai se encontrar num clube lá na Zona Sul, ou na Zona Norte, não importa, mas tem telão, tá calor e eu tô com o carro que o meu pai me deu.

O rapaz segue com um amigo pela avenida do Estado. Em outro carro, vai o outro amigo com uma namorada. Todos querem chegar rápido. Domingão, solzão, jogo e eu quero mais é beber.

Mas o garotão também adora correr. O selo símbolo de rachas diz pro bom entendedor de que praia ele é. E ele acelera.

Emparelhado com o carro de um estranho, só pra provocar, ele continua. Mas não percebe a curva. E a curva suave de repente fecha mais. Ele perde o controle.

O carro atravessa uma, duas, todas as faixas e bate na mureta branquinha, recentemente caiada. Capota. Se arrasta por mais uns cem metros de ponta cabeça até parar por falta de mais impulso.

O carona, amarrado com o cinto, fica firme no banco e tem só escoriações. É levado pelo resgate. O garotão de shorts e camiseta, que nunca acreditou no fim da vida, tem a cabeça esfregada no asfalto junto com a lataria do carro. Não há lugar sem sangue no exíguo espaço da máquina de quatro rodas.

Carro, corpo, rosto, tudo é irreconhecível. Então o corpo, que não serve mais pra nada, fica lá no meio fio. Depois, assim como a lataria do que era o carro, é arrastado pra calçada, porque o trânsito tem que fluir.

Quando chego, ainda afastada, percebo a mãe sendo retirada da cena. Melhor assim. Não preciso falar com ela. A mulher quis ir lá, não acreditaria se não visse com os próprios olhos. É o início do fim de sua própria vida que está jogado naquela calçada toda quebrada e suja.

Meu motorista logo dá um grito: o que meu sobrinho está fazendo ali? É o amigo que estava no outro carro com a namorada. Tio, eu vinha logo atrás, não era racha, não sei o que aconteceu. Seu moleque, podia ser você, seu irresponsável! Cadê seu pai? Eu vou chamar sua mãe e quero ver você pegar o carro de novo!

O muro quebrado continua lá. Já são mais de quatro anos. Já passou a outra Copa. O Brasil não foi campeão. Mas o muro, do mesmo jeito, ainda está lá. Uma marca de triângulo mal feito na minha memória.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Transparente

É!!!
Eu devo estar cinza mesmo.
Mas o meu coração está verde e meus olhos estão vermelhos.
Minha gargarta está roxa, meu fígado amarelo e minha língua está turquesa.
Estou toda colorida, de tons berrantes e, dependendo do olhar, até sinistros.
É que às vezes eu sou assim: só vejo o escuro do poço na minha frente!
São breves estes momentos.
Esse é o defeito da minha personalidade.
Minha alma ainda é translúcida, quase sempre totalmente transparente.
Pena!
Devia ser negra.
E intransponível.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Eu aceito

Agora que passou da meia-noite eu posso dizer que aceito ser sua mãe.
Serei uma mãe precoce, você sabe, mas, no futuro, a gente poderá, sim, ir juntas para algumas baladas. Só não vou me drogar tanto, mas talvez você, em algum dia, tenha que me carregar pra casa. Prepara-se.
Nos primeiros dias da gestação, não se entristeça, mas eu vou chorar muito de desespero. Se tivesse 30 já choraria, imagine, então, aos 14?
Mas, enquanto a barriga crescer, eu vou colocar uma música legal pra você escutar e já ir se acostumando com os sons de qualidade. Talvez alguma canção de ninar, talvez algo de Toquinho, sei lá, ainda vou escolher, mas você terá uma música pra não se esquecer.
Vou me surpreender e bordar lembrancinhas em ponto-cruz e um quadro com o seu nome pra colocar na porta do quarto do hospital. Tentarei por insistência ter um parto normal, mas depois cederei aos apelos do médico, dizendo que você corre riscos, e permitirei a cesariana
Depois que nascer, vou te amamentar até os 2 pra você não correr riscos. Vou sempre te fazer ninar no colo, tenha certeza, cantando baixinho aquela mesma canção que escolhi lá atrás.
Mas, não pense que sua vida será só moleza. Você não terá tudo o que quiser e nem na hora que quiser. Quanto mais espernear, e mais se jogar no chão, mais dura será sua vida ao meu lado. Vamos brigar a partir do momento em que você começar a andar, mas nunca vamos dormir sem nos falar, sem trocar beijos, sem uma história contada na cama.
Também não vai comer só tranqueiras. Não sei como farei isso, porque também quero me entupir de doces, mas juro que resistirei.
Quando entrar na escola, estarei ao seu lado na hora das lições de casa, irei nas reuniões chatas de pais e mestres e babarei nas festinhas de final de ano, com você fantasiada de flor, de borboleta, de coelho, dançando muito sem jeito.
Construiremos uma certa cumplicidade, eu sei, mas acho que na adolescência vou me atrapalhar com você. Como não brigar, como não querer que você faça o que eu acho certo, como confiar no mundo e te deixar seguir o seu caminho? Como evitar que você caia nas mesmas ciladas em que eu caí?
É! Não vai ter jeito.
Na idade adulta você vai ter que me perdoar por todas as discussões feias que teremos durante a sua adolescência, eu sei. Mas vou preferir pagar o seu terapeuta, com quem no futuro você vai falar sobre nossa tumultuada relação, do que te perder para sempre.

sábado, outubro 07, 2006

A boa amante

Ela me recebe quando chego
Nas madrugadas, em silêncio
Por vezes cinza, fria e úmida
Outras cheia de lua
Mas sempre a me envolver

Seus espaços são espaços que eu percorro como um quintal
...conhecido quintal

Vejo em cada ponto uma história
Procuro em cada esquina um alguém

Meu exemplo de paraíso
Sem flores
Sem mar
Nem areia

Meu esconderijo, meu porto

Velejo até aqui e ancoro meu corpo desenganado
Às vezes realizado
Destroçado
Às vezes aliviado
Outras arquejado

As ruas dessa cidade me conhecem, me amparam e não me abandonam
Sou eu aqui, e aqui me reconheço

domingo, outubro 01, 2006

Sem convicção nem humor

Já não é fácil manter o bom humor numa manhã de domingo de eleição, friozinho, depois de trabalhar mais de 12 horas na véspera por causa de um avião que caiu na selva amazônica. Mas, vamos lá, notícia sempre é estimulante, o resultado final foi bom e o melhor é se animar pra ir votar antes de ir pra redação. Mas ter que aguentar um babaca que esconde o rosto sob um capacete pedindo pra você votar no Clodovil já é demais: "Vota no Clodovil que tudo melhora". "Ooohh cidadão, porque você não vai pra puta que o pariu que eu não vou votar em maluco. E, quer saber, boca de urna é crime eleitoral, seu cretino."
Desabafo feito, vamos lá encarar os tucanos da minha seção eleitoral. Mas, surpresa boa: não tinha fila. E, no final, votar no meu antigo colégio, no meu antigo bairro, sempre é divertido, meio nostálgico. Logo de cara, encontro o velho vizinho, mais velho do que nunca, agora falando dos netos. Depois, o mesário é colega de infância: "Você não é irmã do Gerson? Eu sou o irmão do Osmar?". Papo de xarope, o mesmo estado meu.
Me animo: até que terminei o voto mais cedo do que calculei e sigo pro jornal tentando desviar o dial da CBN, já que de notícia eu estou farta e vou me fartar ainda mais durante este dia. Mas sigo com aquela sensação esquisita logo depois traduzida pelo João Ubaldo: o voto este ano está sem entusiasmo, sem convicção, sem esperança. Todo mundo que conheço está assim: voto pelo hábito, com raiva, meio por obrigação, no menos ruim. Antes do apertar o sim verde, xinguei a foto do infeliz, esperando que ele escute e páre de fazer bobagens.
Mas suspeito que hoje e os próximos 4 anos vão ser bem amargos.

sexta-feira, setembro 29, 2006

É essa

Vértice
by Elisa Lucinda

Parece desperdício
parece que me amas escondido
parece orgulho
parece castigo.
Gritos calados revolvem a terra de dentro.
São patas fazendo poeira e dor.

Coitado do amor, logo ele que é filho do encontro,
está sozinho no ponto.
Desencontrou.

Será que um dia eu consigo escrever assim, com tanto coração?

quinta-feira, setembro 28, 2006

Batalha

Ele solta aquele tac, um smack
Um beijo bem alto
No meio daquele silêncio da redação

A outra olha, se horroriza
Eu olho, me assusto, mas me divirto
Não me importo

Ele diz: gooostosa
E eu gargalho
Só dou risada
É engraçado

Então vem, me encara
Se aproxima, toca na cintura
Ameaça um bacio, um amasso

E eu olho, e espero
Não me viro
Vem devagar, olho no olho, e
Na hora H, do meu lábio, ele desvia

Não tem coragem?
Eu provoco
E a gente ri
Do estalo

terça-feira, setembro 26, 2006

Dos pés ao tronco

Deixe eu dormir abraçada com você
Como se eu fosse uma criança
Como se você fosse meu grande urso

Não me afaste
Nem se vire.
Só me permita ficar assim, grudada em você
Acompanhando dos pés ao tronco as suas curvas

Assim eu adormeço
E te protejo

Mês Nove

Adoro setembros.
Não têm aniversários, não têm data marcada no calendário pra comemorar nada; são só setembros.
Geralmente no início deles há muita dor, mas conforme vão passando eles mudam minha vida de ponta cabeça. Termino novelas e começo histórias.
No seu percurso, inicio fases inesquecíveis, que muitas vezes coincidem com o fim de temporadas já insustentáveis.
Deve ser por isso que adoro setembros: eles têm o dom de virar as minhas páginas.
Sempre em setembro tudo melhora, porque expurga. É o pus que vai embora.
Neles já me expus, perdi, superei, enterrei o ser mais amado, matei saudades, tirei a limpo um mal entendido de quase décadas, mudei de casa, gritei da mais profunda dor e me senti extremamente feliz com o mais simples dos prazeres: um abraço. O trivial.
São tantos acontecimentos em setembros que não há apenas um dia deles que seja mais importante. Não para mim.
E, às vezes, até esqueço que estou nele, em um setembro.
Quando tudo está por ruir, também me esqueço de pensar que ele chegará. Serviria pra me alimentar de esperança. Mas, na minha cabeça dramática, é como se o mundo fosse parar lá, sei lá, em fevereiro, abril ou julho.
Só me dou conta da importância de setembro quando percebo, meio no susto, como as coisas estão se movimentando e, de novo, a minha vida, se transformando. Chegou setembro.
Foi assim neste que estamos. E que, que pena!, já está acabando.

(Não me lembro de ter terminado um setembro sequer de minha vida infeliz. Triste às vezes. Mas nunca, nunca infeliz)

segunda-feira, setembro 25, 2006

Noite de Domingo

Não queria dormir sem escrever um pouco. Queria te contar que hoje, hoje eu enlouqueci de novo.
O dia começou e eu não estava nem aí. Minha alma havia pulado mais que o meu corpo, e ele, cansado (engraçado!) foi obrigado a acompanhá-la. Um verdadeiro escravo.
De manhã, o coitado estava acabado, destruído, jogado no colchão.
Mas ela, ela passou o dia leve, sapeca, num desbunde total, com aquele ar infantil no olhar.
Queria te contar isso (uma bobagem), porque ontem (já passou da meia-noite), enquanto minha alma dava um baile no meu corpo, e a minha voz cantava alucinada com a multidão, era com você que eu estava.
O corpo lá, mas a alma, a alma não. Tem dias (sabe?) sou pura intuição.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Noite em Paris

Fomos pra Paris e nos envolvemos em ilusões. Falamos o que quisemos ouvir e nos voltamos a nós mesmas. Éramos nós em Paris, falando alto pra quem nos quisesse ouvir, risos de amor e liberdade. Somos livres por natureza. Esse é o nosso grande mal. Ironia.
Nada de morte em Paris! Não me faça chorar com essa história.
Viver aos 22 também é uma grande coincidência (quando tinha 7 falava que casaria aos 22, idade redonda perfeita pra matrimônios, eu achava. Mas nunca casei de verdade. Sou solteira por natureza). Quando fiz 22 de fato sai da vida. E hoje a vida me chama de volta, pra acertar as contas com ela. Deixei dívidas no passado e esse passado me cobra os dividendos. Pra você ver que não adianta nada planejar a vida como um arquiteto bem formado.
Não morra nunca. Não me fale mais em morte. Mesmo se existir mil reencarnações, não me fale em morte! Ela não virá assim, porque você a imagina. Ela virá naturalmente, quando o corpo se desmatentelar pela idade. A idade de Maria, quando tudo o que era possível aconteceu e nada mais importa.
O amor que hoje senti por vocês foi descomunal. Ficaria a noite inteira nesse sonho. Delírio? Não.
E me comove o empenho de vocês. Vamos nos divertir nessa cidade e criar uma história pra psicanálise traduzir no futuro. A psicanálise de Paris vale mais a pena que a de Viena. É mais leve que Freud.
Amo vocês!

domingo, setembro 17, 2006

Versos em Sonhos

Às vezes durmo e sonho que escrevo versos
Versos com rimas ricas, sem rimas pobres
E, sonhando, tenho certeza que vou acordar
E escrever o que pensei, elaborei
Mas, se acordo, não sei mais nada
As rimas fogem, as palavras se apagam

Hoje à noite sonhei “amor” e “muito mais”
No coração, só fiquei com o “amor”
O “muito mais” virou resto
Perdido num sonho esquecido
Sem sentido, nem memória
Pena que os sonhos são tão surreais

quarta-feira, setembro 13, 2006

As Quatro do Fusca

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Eu fiz a proposta: vamos sair nós quatro para ter uma conversa franca. Éramos amigas. Ou imaginávamos que assim o era. De toda forma, vivíamos num tempo e dividíamos um espaço de sonhos, dúvidas e apreensões.
E lá fomos nós. Eu ao volante do Fusca, párei naquela praça escura do 2º subdistrito. Do lado de fora, a tempestade; do lado de dentro, vidros embaçados, respiração oprimida, nós nas gargantas.
O objetivo: falar umas às outras o que significava aquele homem para cada uma. Falar abertamente. Ouvir sem rancores.
Minto se afirmar saber exatamente o que dissemos, quais as palavras. Tenho reminiscências.
Com certeza eu fui a primeira a falar. Falei de envolvimento, de não saber bem o porquê ele exercia sobre mim tanta atração, de não conseguir dizer não. Tinha um pouco de vergonha das outras três. Como se, me envolver com ele, fosse um grande erro, uma traição, como se elas não tivessem idéia, como se eu desse a elas a certeza que queriam ter, mas que a partir dali me condenaria a seus olhos para sempre.
Outra falou de transas, sim, mas sem importância. Ela se entregava por passatempo, para ela era mais um, não queria incomodar ninguém, e só curtia se ele estivesse disponível. Não entendia as nossas angústias.
Mais uma confessou uma atração desconhecida, meio platônica, meio paternal, que a assustou em princípio porque já tinha listado seus defeitos e já o tinha rotulado como pessoa perigosa. Até conversara com ele sobre o assunto e ele a surpreendeu.
Por último, a que sempre a meus olhos pareceu a mais frágil de nós, aquela por quem eu devia me preocupar, falou da sedução, do medo, do saber ser inconseqüente, da curiosidade, do querer provar algo que outras já haviam provado.
Como já disse, não sei ao certo o que falamos, com quais palavras. Devo hoje misturar o relato de uma com o de outra. Mas sei bem do que não falamos.
Não falamos de amor ou de paixão. Acho que não porque não quiséssemos, mas simplesmente porque não sabíamos traduzir em palavras tais sentimentos, se é que é possível traduzí-los.
Falo do amor da mulher pelo homem, aquele que não tem dúvida, aquele que não tem culpa, aquele que simplesmente é, sem artifícios.
E também não falamos de sexo. Do bom, do natutal, daquele em que os dois aprendem a se conhecer, sem restrições. Não falamos porque sexo, entre nós, naquela época, ainda era tabu, apesar de sermos próximas.
Não falamos também de cada uma de nós, ou como cada uma se sentia em relação à outra naquele momento.
Acredito, portanto, que não falamos tudo o que devíamos falar. Parece que terminamos a conversa aliviadas, mas naquele carro pairava uma névoa estranha, dolorida, obscura mesmo. Durante anos acreditei que aquilo tinha nos unido, mas hoje sei que isso não é verdade. Só amadurecemos um pouco com aquele encontro.
Mais do que ser envolvente, com pesar, concluímos que ele nos manipulava. Concluímos, juntas, que o melhor que faríamos era nos afastar dele, deixá-lo.
Foi uma conclusão tácita. E foi o que fizemos: o deixamos, uma a uma, cada uma a seu tempo e de sua forma, na sua profunda solidão.

terça-feira, setembro 05, 2006

O outro caminho

Enquanto você se esconde, eu escancaro as minhas janelas
E me exponho cada vez mais
Sem medo de exagerar
Ou errar

Enquanto você se afasta, eu sigo meu outro caminho
E tropeço
E vacilo
Mas não ouso parar

Enquanto você me persegue com o canto do seu olhar
Eu te encaro e te digo
Não se aproxime
Me deixe

Porque dessa vez eu vou sem você

sexta-feira, setembro 01, 2006

Quietude

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Silêncio
Silêncio
Silêncio
Silêncio

Por que todo esse silêncio?

quinta-feira, agosto 31, 2006

Centro da minha palma

A numerologia me diz que eu devo ser prática, racional. Mas a exatidão dos números também me leva pra outro lado... Me descreve como alguém que sonha, que não vive sem vislumbrar algo ali no horizonte, muito melhor. Então tá, sou assim: uma racional sonhadora!!
A astrologia ultimamente anda me batendo. Bate e assopra, a danada. Diz que não posso ser preguiçosa, que a hora do ócio não chegou, que tenho que, por Júpiter ou Marte, banir todo o mal que minha alma mesmo construiu.... Uau!! Isso não parece nada animador.
Acho que preciso mesmo é encontrar uma boa quiromante. Tem uma linha na minha mão esquerda que não existia antes. Ela apareceu curta, perdida. Às vezes está muito forte, às vezes muito fraca. Agora apareceu outra, quase que uma irmã da primeira, próxima ao pulso. Parece que as duas querem se encontrar bem no centro da minha palma. Isso deve ter algum significado urgente.
Minha amiga me disse hoje que eu sou uma romântica. Quase me ofendi. Mas, que nada. Me senti lisonjeada. Prefiro ser diferente nesse mundo onde quase a totalidade quer se convencer que o amor não tem graça. E quando falo de amor falo de tudo o que ele envolve: prazeres, dores, certezas absolutas, dúvidas eternas, encontros, desencontros, taças de vinho, etc, etc, etc....
O romantismo só faz bem à alma humana. É tão falso quem foge disso. Tudo o que é belo, tudo o que nos faz sentir mesmo bem passa pelo amor. Pra perceber, é só ligar a antena da sensibilidade e escutar, ver e sentir. Sem falsos pudores ou rancores.
So... Quero mais é ser romântica. Sou mais romântica agora do que quando tinha 20. Acho que é pura virtude ficar romântica aos 40. Duro é mulher que fica amarga aos 40 (o que, aliás, é muito mais comum). Desse mal eu não morro.

sábado, agosto 26, 2006

Quatro Pares

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Se conheceram no trabalho
Se amaram sem saber
Se afastaram pelos outros
Se reencontraram numa festa
Se uniram na alegria
Sob mil promessas
...uma família

Se conheceram na escola
Se amaram na infância
Se afastaram pela bronca
Se reencontraram num sonho
Se uniram por esperança
Sob muita dor
...um filho

Se conheceram num palco
Se amaram pelos gestos
Se afastaram pela vida
Se reencontraram na solidão
Se uniram para sempre
Sob as estrelas
...uma casa

Se conheceram numa esquina
Se amaram às escondidas
Se afastaram em silêncio
Se reencontraram numa busca
Se uniram por impulso
Sob o eterno
...um amor

quinta-feira, agosto 17, 2006

O monstro

Aquele monstro se nutria de nossos prazeres, dos nossos sorrisos, do nosso esforço e da nossa união.

Ele queria a nossa energia para sobreviver, sobrepujar e, por fim, nos esmagar.

No início, ele era um pequeno verme. Mas algumas de nós lhe demos crédito, confiança, respeito.

E ele cresceu e se transformou num ser abominável, que soltava faíscas de ódio e fogo de ressentimento pelos olhos.

Só seu hálito era capaz de nos derrubar.

E, assim, fomos caindo, uma a uma:

A primeira, perdeu o ânimo.

A segunda, o juízo.

A terceira, a paciência.

E eu, a última, a esperança.

quinta-feira, agosto 10, 2006

Vida astral

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Abro o jornal e vou ler meu horóscopo de hoje. Tenho que morrer de rir e manter meu bom humor. Olha só:

"Sua vida espiritual tem sido um grande objeto de estudo com a Lua em Áries. Isto facilita a junção de partes separadas de sua personalidade, em torno de um ser maior dentro de você."


Aí eu começo a pirar: objeto de estudo parece coisa de cientista maluco, penso. No caso, eu mesma. Será que foi isso que a astróloga quis dizer? Que os geminianos devem fazer autoanálise?
E volta o tema das duas partes querendo se unir. Justo agora que começo a achar que o melhor é ficar assim, dividida, entre o estável e instável, entre o sério e o escracho, entre o amor e a dúvida, entre o ideal e o real, entre o reter e o deixar partir.
Nesses tempos difíceis, minhas opções não têm sido nada lógicas. Escrachada, mergulho na instabilidade do amor ideal para cair na dúvida real e simplesmente decidir que o meu agora se resume em deixar partir.
Ser maior parece que pesa uns quilos a mais no corpo e na consciência. Ser maior seria insistir até a completa exaustão? Ou ser maior significa alguém tão magnânimo e bondoso que chega a ser chato? Alguém que perdoa tudo e aceita tudo do jeito que lhe é dado? É isso que a religião ensina a vida toda pra gente, não é? Esse ser maior não me serve.
Acho que preciso de mais alguns ciclos da Lua em Áries para descobrir qual é esse ser maior que a astróloga diz estar dentro de mim... Por hora, queria deixar o espitual de lado e me contentar em ser de carne e osso, o que já é bem difícil.


terça-feira, agosto 08, 2006

Feliz Ano Novo, Vivi

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Bem, é agora que o ano começa. Parece incrível, mas é isso. Um ano sem parar, com a mente, o corpo e o coração a mil. Mente confusa, corpo em frangalhos e coração não importa. Foi isso que sobrou dos últimos 12 meses. Mas tudo foi pro bem, é certo. A paixão ainda me domina por inteira e inteira eu continuo. E toco o barco inventando coisas pra me manter no foco. E criando, aposto, vou passando o tempo até o tempo ajeitar a minha vida.

So, estou louca pra pular as sete ondinhas e jogar uma flor no mar pra Iemenjá. E pronta pra fazer as promessas de começo de ano que todos sempre fazem (e pouquíssimos cumprem).
Então, vou escrever pra não esquecer.
Em 2006/2007 vou:

1. Ler mais (livros têm enchido minha alma)
2. Escrever mais (é o melhor alívio)
3. Beijar mais a Bia (retorno imediato)
4. Sair mais com minhas amigas (elas seguram as pontas)
5. Beber menos (sou louca sem isso)
6. Comer menos açúcar (só dá tonturas)
7. Andar mais (a solidão da caminhada me estimula)
8. Ir mais ao cinema (fui ver Elsa & Fred no fim de semana; é tão maravilhoso que me questiono como posso ficar meses sem ver algo na telona)
9. Pensar menos no que passou (é o mais difícil)
10. Planejar menos o futuro (nunca funciona)
11. E não esquecer. Mas transformar

sexta-feira, agosto 04, 2006

Penumbra

Gosto de olhar para as árvores na penumbra.
É como olhar para um tempo que eu conheci,
mas para o qual eu nunca mais vou voltar.

sexta-feira, julho 28, 2006

O trapo

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E Maria se transformou num trapo humano.
Sua pele como que se descolou dos seus ossos.
Se escuta, não escuta.
Parece que escolhe o que escutar.

Ou prefere fingir que ninguém fala
para também não precisar falar.
Nada mais lhe pertence,
mas também não se pertence mais.

Roupas largas,
peças desconexas,
nos pés só chinelos.

Me pergunto onde está Helena?
Que um dia foi a temida,
que um dia foi a raivosa,
que um dia foi a querida.

Ninguém quer mais Maria.
Mas ninguém pode querê-la mais.
Vários tentaram. Ela não deixou.
Agora ela é só.

E, só, se esbofeteia,
faz seus olhos ficarem roxos,
pontos na testa,
desequilíbrio,
tropeções incalculáveis.

Às vezes foge,
talvez porque também tenha um lampejo e procure por Helena.
Talvez...

Em qual momento da vida de Maria Helena a deixou?

Helena,
a das pernas belas,
a da bicicleta,
a da prancha,
a da praia,
a dos cabelos sempre pretos.

Olhos parados,
corpo parado,
boca caída.

Sua imagem.

Um trapo essa Maria.

Deserto

É um lugar onde nada falta e tudo falta.
Sobra tempo nas nossas vidas de lá.
Lugar onde o dia leva um mês para passar e o tempo de um dia é uma hora eterna.
Onde a vida parece outra e me transforma em outra.
Lá eu nem sei o que sou.
Alguém que não sabe onde está. Alguém que não tem o que o fazer.
Alguém que é muito, mas não o que o olho alheio vê.
Lá é um lugar que não se move, um lugar adorável que me paralisa.
Onde as crianças estão para brincar e os velhos para morrer?
Não. É o lugar onde as crianças e os velhos estão para viver.
Viver como não poderiam em nenhum outro lugar. Lá estão em paz.
Mas tristemente é um lugar onde os jovens estão para desprezar e as mulheres maduras para lamentar. Os homens maduros? Eles nem existem lá. São fantasmas ou exceções.
É um lugar que está fora do mapa, que se esconde do mundo.
Um lugar quente como o inferno e silencioso como o alto mar.
Aliás, não deveria existir um lugar tão quente tão longe do mar.

sexta-feira, julho 14, 2006

Os pés de Flora

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De todas as histórias que já ouvi sobre dormir de meias a mais curiosa foi a de Flora. Minha amiga conta que dorme de meias desde os 20 e poucos por causa de um amor, talvez o único de sua vida. Ela se ilumina quando conta que o amava perdidamente. Que o sexo era ótimo, mas que, depois do rompimento, o que nunca conseguiu esquecer foi daquela sensação dos pés do outro nos seus pés. "Era como se quatro pés fosse um único pé", diz.

Se peço pra ela contar, fecha os olhos e parece até que entra em transe. Ao lembrar, diz que sente imediatamente o volume e o frio dos pés do outro, a aspereza dos seus calcanhares masculinos, o toque das unhas mal aparadas e até o roçar dos pelos que ele tinha sobre o peito do pés. E, já aos prantos, diz que só deseja que ele também suspire com a lembrança de seus próprios pezinhos delicados, número 34.

E foi por isso, diz, que passou a dormir de meias. A cada namorado, a cada amante, mais que sexo bom, o que procura é a mesma sensação nos pés. Por isso no primeiro encontro nunca usa as meias. É a esperança de reencontrar o que alimenta a sua loucura. Mas, a partir do segundo encontro, colocá-las é inevitável. É como um impulso que Flora não consegue evitar.

E é por isso, diz, que sempre está só. Os homens com quem sai nunca conseguem satisfazê-la. Acham a meia brega. E não usar meias lhe dá náuseas.


Mas, penso, eles até devem ter razão! Imagina só, no meio da empolgação, nua em pêlo, a mulher sempre pára tudo, abre bolsa, cata um par de soquetes e veste. Sem dar explicação.

quarta-feira, julho 12, 2006

A machadinha

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Hilda tinha uma machadinha. Ganhou de presente do Doca. Mas não foi um presente qualquer.

Não que ganhar uma machadinha de presente do marido seja coisa comum. Mas poderia ser um presente digamos... terno, carinhoso ou até exótico se o marido tivesse ido até uma loja, olhado cada objeto com atenção e escolhido o que mais refletia o amor que sentia pela mulher.

Mas não foi assim. Hilda foi quem pediu a machadinha. Pediu não: exigiu.

Quis a machadinha quando descobriu que Doca a traia. Pois ele de birra foi à loja, escolheu um belo exemplar, de cabo vermelho, amolou bem amolado e levou para a mulher. Ela recebeu, não agradeceu, enrolou em um pano de pratos e guardou no meio de suas calcinhas. "Eu ainda te mato com essa machadinha!", declarou.

A traição foi assim: o casal e dois filhos viviam numa cidadezinha da Paraíba. Já tinham passado por São Paulo, guardado algum dinheiro e como boa parte dos migrantes resolvido voltar pra terrinha. Depois de um tempo, o calor, o ócio e a falta de dinheiro voltaram a apertar e eles decidiram apostar de novo no Sul.

Diferente da maioria dos casais, foi a mulher quem voltou pra São Paulo. Tinha contatos, antigas patroas e, avaliou, podia conseguir um emprego primeiro e preparar o retorno da família.

Mas a solidão é um osso difícil de roer para o homem que adora dizer que é macho. Dois meses sem uma mulher foi o limite para Doca: arrumou uma amante, mulher de um vigia noturno. Tinham encontros todas as noite, na casa dela. Ele esperava as crianças dormirem e, pra não fazer barulho e correr o risco de acordar alguém, saia e chegava em casa empurrando a moto.

Grande idéia essa do Doca! O plano era perfeito, as crianças tinham sono pesado, mas (olha aí o imponderável!) a família tinha uma vizinha (sempre há uma vizinha pra atrapalhar ou salvar a nossa vida). E ela ligou para Hilda.

A mulher enfurecida voltou no dia seguinte pra sua cidade, sem contar pra ninguém (só a vizinha sabia). Até comprou uma passagem de avião à prestação. Passou o dia todo na vizinha, escondida. Ouviu o marido brigando para os meninos irem logo pra cama. Viu as luzes do quarto dos garotos se apagarem. Viu seu marido empurrando a moto da garagem sorrateiramente. E estava lá, na sala, quando ele voltou de madrugada, quase amanhecendo. Foi um Deus nos acuda!

Pra encurtar a história, até levar a mulher pra conhecer a amante ele foi obrigado. Depois da fúria, Hilda, de verdade, se divertia com a covardia do marido. E aí veio a idéia da machadinha.

Por isso que Hilda mantém até hoje a bichinha guardada, embrulhada no pano de pratos, no meio de suas calcinhas. Quando a coisa aperta, ela só fala: "Olha, Doca, que um dia eu ainda vou usar essa machadinha!"

segunda-feira, julho 10, 2006

Se encolhendo

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Ele acordou naquela manhã e não quis levantar da cama. Dormir já tinha sido um sacrifício. O barulho da chuva... Ele sempre adorou dormir com o barulho da chuva, trovões ao longe, o cobertor quente. Porém, daquela vez, ouvir a chuva batendo na sua calha foi como ouvir marteladas que o impediam de relaxar. Onde ela estava?

A chuva insistente tinha decidido não parar e ele dormiu com seus pesadelos de sempre. Monstros que o alcançavam. Corrida por um mundo escuro e negro onde ele sempre escorregava. E, no final, a solidão doendo na alma. Mesmo quando estava acompanhado, ele sentia que acordava solitário, transpiração fria, respiração ofegante. Aquilo sempre se repetia.

Naquela manhã só incomum por causa da chuva que não parava, ele se encolheu ainda mais debaixo do cobertor, apertou seu travesseiro e quis voltar a ser criança. Criança, achou, não pensaria nela. Mas não conseguia ser criança. Sentia como homem que era. Pensar naquela mulher era parte da sua rotina. Acordar com ela todo dia, dirigir a ela seu primeiro pensamento era o seu tormento. Tormento que ele adorava e cultivava. Porque era tudo o que lhe tinha sobrado dela.

Com a chuva, porém, tudo era mais doloroso. Ele suportava a lembrança na rotina, mas a chuva lhe trazia um desejo por algo que não se completou. Uma culpa sem sentido já que nada acontece fora de sua época. Mas era como se ele já a tivesse perdido. Onde estaria aquela mulher?

sábado, julho 08, 2006

Não se assuste com o que escrevo

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Nunca se assuste com o que eu escrevo
Eu não escrevo para te impressionar

Escrevo pra desabafar
Escrevo pra não esquecer
Escrevo o que já vi e muito do que já ouvi
Escrevo o que invento
Escrevo o que sinto

Não escrevo pra irritar
Não escrevo pra provocar
Não escrevo pra te expor
Não escrevo pra me auto-afirmar

Talvez escreva pra te alertar
Talvez escreva pra me alertar

Porque quando coloco as letras na tela muito do que sai é o que eu também preciso saber

Outro dia disseram algo como "baixa a bola, oh poço de sabedoria!"

Não me ofendi, mas não tenho a intenção de saber mais que ninguém
Só escrevo o que percebo e o que a minha intuição me diz

E, daí, escorregar isso da ponta dos dedos pro papel parece inevitável
Necessário até
Impossível de brecar

Comecei. Não consigo e não quero mais parar

sexta-feira, julho 07, 2006

Pasta suspensa

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Como tua secretária
Eu te coloquei num envelope pardo
E te arquivei

Te depositei naquele arquivo cinza
Móvel enorme de aço, de gavetas gigantes
Emperradas e barulhentas

Te pus numa pasta suspensa
Mas não te inventei um título
E nem te lacrei

Quem sabe um dia
Te consulto de novo
E te desarquivo de vez

terça-feira, julho 04, 2006

Descobrindo a roda

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Seu sorriso maroto me acorda todas as manhãs
O cheiro incomoda, mas não importa. Ele desaparece

Encolhe suas pernas e encaixa seus joelhos no meu ventre
Enrolamos mãos e braços e tentamos não misturar nossos hálitos

Cochilamos, acordamos, cochilamos de novo

Isso tudo é como uma brincadeira

Você é a parte mais importante de mim
É a melhor coisa que tenho
É o calor que não quero perder

Chora de manha, me olha de lado, finge dores e problemas
Fala verdades absolutas
Descobre a roda todo dia
É personagem de histórias fantásticas

Você é minha vida

Te beijo sem parar e você ri de dar gosto
Pede cócegas, manda em tudo, desorganiza o mundo

Me beija escondido enquanto finjo que durmo
Me leva até o carro e faz setas para eu estacionar

Estou a seus pés, mas sei que te controlo
Está em meu colo, mas sei que um dia partirá

Mas estaremos juntas até a vida
Sabemos porque não cabemos dentro nós

Somos maior que nós mesmas e ninguém, ninguém, nos poupará

segunda-feira, julho 03, 2006

Vamos reinventar

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É possível reinventar o amor? Estou convencida que sim.
Ainda não sei de que forma, de que jeito, com qual técnica, mas me custa o ceticismo. Não sei ser incrédula. O otimismo é a minha marca.
A vida sem paixão não me basta mais.
Por isso, prefiro apostar na reinvenção do sentimento para não perdê-lo.

Hoje li Carpinejar. Talvez por isso tenha me convencido de vez. A dúvida que ainda pairava no ar se esvaneceu. Ele escreve sobre o amor:
"É uma encruzilhada colocar a casa para fora da boca. Abrir-se. Expor-se de tal modo que não se pode retornar ao que julgávamos nossa vida, ao que acreditávamos nosso lar, ao que confiávamos como nossas convicções e nossa ordem. Como confessar uma paixão e depois fingir que isso não mexeu com a gente e retomar o trabalho e a disciplina dos dias como se fosse comum?"

É impossível fingir. Por isso, só resta reinventar. Aceitar que a mudança é definitiva e continuar. Usar essa energia mágica que esquenta e esfria o coração a cada décimo de segundo e trabalhar.
Saber que o amor não nos pertence, mas também não pertence ao outro. Portanto, não pode ficar enclausurado no peito da gente, sem destino, sufocado. Tem que vazar, mostrar sua alegria, mostrar sua forma de ser.

É essa a minha disposição.
E também é a minha esperança. Esperança que também tinha de ser sua.

Talvez, reinventado, o sentimento possa também se reencontrar. Em outro lugar


domingo, julho 02, 2006

Número alto ou número baixo

"Vam'bora seu Benê!"

Tenho saudades do seu Benê. Motorista do Diário do Grande ABC, conhecia tudo na periférica Mauá. Qualquer rua, de qualquer bairro. Tinha sido motorista da Eletropaulo, levava a equipe para instalar os postes de iluminação nos confins da região. "Vocês querem ir na rua em número alto ou número baixo?" Era a pergunta clássica que fazia pra gente, a reduzida equipe móvel da sucursal, no início dos 90: eu, Chico e Anahi. Ele queria saber por qual ponta da rua devia chegar. Pra gente era o máximo: nos bairros de Mauá as ruas eram todas tortas, tinham normalmente surgido de um loteamento clandestino, sem planejamento... Como o cara sabia só pelo nome por qual lado devia chegar???!!!

É que ele conhecida tudo por lá. Quando a gente estava de saco cheio, era só falar: "Seu Benê, vamos passear". Ele nos mostrava os lugares mais bucólicos de Mauá, pedaços com cara de sítio, serra, lindo mesmo. Era difícil acreditar porque estávamos em Mauá.

Seu Benê era um cara incomum. Meio sábio, meio pai, companheiro acima de tudo. Sempre contava com algum constrangimento que já tinha sido "muito errado nesta vida". Nada demais, na verdade: tomou porres homéricos, chegou de quatro em casa várias vezes, fez a mãe chorar um bocado, quebrou corações. Mas era um cara "redimido". Era um homem apaixonado. A mulher dele, acho que chamava-se Lídia, era o seu grande amor. A mulher que o tirou "daquela vida". Tinha filhos que pareciam seus netos e era mesmo um homem feliz.

Não sei ao certo em que ano seu Bebê ficou doente. Acho que teve gota. Já não estava mais no Diário. Fui visitá-lo no hospital, ele havia perdido uma perna e chorava. "Como eu vou fazer Vivi? Meu filho está com vergonha!" O moleque tinha uns 12 anos. Mas não estava com vergonha. Estava arrasado com a doença do pai. Dias depois seu Benê morreu. Grande perda, seu Benê. Bons tempos, seu Benê.

sábado, junho 24, 2006

Sem escrever

Ando sem vontade de escrever.
Fase difícil essa.
Quando não escrevo, parece que vou sufocando, murchando.
Pensamentos acumulados que não encontram formulação.
Pensamentos acumulados que não encontram sentido.
Lembro: como são estranhos blogs encerrados, com recados do tipo "pessoal, acabou".
Tenho excesso de histórias.
O que está em falta é aquele impulso de fazer.
Um pouco de prática, de ser prática, talvez.

quarta-feira, junho 14, 2006

Nudez

Ele achou que a nudez podia ser um sinal de possibilidades mil. Mas, pra ela, a nudez era só sinal de liberdade no meio às flores, na beira do rio, embaixo do sol.
Ele não entendeu nada, mas pra não virar um criminoso aceitou, não sem amargor, revolta do desejo.
Ele até que foi forte. Diante dos espinhos, a carregou no colo. Ela se comportou como um bibelô frio e quase o enlouqueceu. Não admitia a vontade alheia e não se importava em não fazer o que não lhe daria prazer.
No final, mesmo herói, ele se sentiu um vilão.
No final, mesmo intacta, ela virou uma cadela. Para ele, uma qualquer.

segunda-feira, junho 12, 2006

Acabou

.... e o dia veio e já se foi...

Acabou.

Deixei ele vir e me atropelar
Parei só pra ele me olhar, me encarar, me angustiar

Mas ele não conseguiu.
Eu consegui.

Segui. Ele se foi

Fico eu aqui, de novo, só
Até ele voltar. O dia

quarta-feira, junho 07, 2006

Sem gritar

Ela cresceu ouvindo a mãe gritar: "Eu quero sumir!!"
Criança, sofria e chorava com o desabafo materno, a raiva colocada naquela voz, a culpa por talvez ser o motivo do desejo. "O que fiz de tão errado?", se perguntava.
Menina-moça, foi aprendendo a lidar com aquilo. Os brados maternos continuavam, mas ela passou a considerá-los uma frescura, um jogo de cena, a histeria de uma mulher que queria atenção, que não se resolvia.
Ela cresceu. Ela não grita. Mas hoje entende o desejo da mãe. Porque o berro está parado na sua garganta, em vários dias, de várias semanas. E ela não se permitirá gritar.
Não é o desejo real de sumir do mundo, não é o sumir da visão dos outros. Na verdade, o sumir é dela mesma. É uma vontade de sentir que não está lá, que não vê, que não escuta, que não percebe, que não intui. Mas de si mesmo ninguém foge.
Não é nem o desejo de morrer. É o desejo de não ser. De simplesmente nunca ter sido.
É contraditário porque ela adora a vida. Adora viver com as pessoas. E adora a sua própria vida. Pensa: a vida é próspera e tem lhe dado tudo. Tudo.
Mas a dor que a atinge é uma dor que se compara à da morte. A dor da morte por algo que simplesmente deixou de ser, que não tem mais volta, que não tem mais conserto, que ela não quer mais, mas que não queria que acabasse. Porque o chão a partir do qual ela construiu sua vida começou a se mover. Ela mudou. E ela não sabe o que virá. O que vai colocar no lugar do que se foi?
Ela descobriu algo obscuro nela e com isso terá de viver. Sem gritar.

domingo, junho 04, 2006

Balões...

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O céu estava salpicado de balões naquele dia de inverno de 1970.

Balões de todas as formas... de todas as cores...

Balões em forma de estrela, de bola, de bota, de balão...

Balões azuis, verdes, amarelos, vermelhos, coloridos...

O céu límpido...


E a menina parada no pátio olhando pro céu...

Era quase possível tocar nos balões...


A menina parada no pátio...

Muitas crianças correndo a sua volta...


A menina parada...

O chão de paralelepípedos...


A menina.
A menina.

sábado, maio 27, 2006

Sexo

Teve época que tive vergonha do sexo. Acordar nua numa barraca na praia com o sol brilhando do lado de fora, ou ser flagrada por amigos entrando em um motel, era constrangedor.

Depois, achei que sexo era loucura e risco. À luz do dia, em pedras de riachos, cachoeiras, em salas ou quartos ou banheiros de casas de família enquanto a família dormia ou se distraia.

Mais tarde, com filhos, temi que sexo fosse só obrigação, um cumprir tabela, um algo a mais pra fazer.

Como boa aluna e curiosa, fui aprendendo que sexo deve ser o experimentar, o se arriscar, o se entregar.

Hoje, penso que sexo também tem que ser doce, terno e pleno. Tem de estar envolvido com paixão, confiança e segurança.

Por hora, ainda não concluo nada. Na metade que espero estar de minha vida, acho que de sexo ainda tenho muito que aprender.

quarta-feira, maio 24, 2006

I used to love her

But I had do kill her

I used to love her
But I had to kill her

Boa balada essa do Guns... E nessa balada eu penso: vou me assassinar.

Na boa...
Quem me conhece sabe que ando com muito bom humor, mas é que tem hora que uma parte da gente que a gente ama quer matar a outra que não se encontra.

Como me disse um amigo ontem, nós não temos mais idade pra crise existencial...
Mas, eu retruco, por que não?

Ainda nem consegui assassinar de fato a outra parte!
Até gosto dela!
No final, acho que é isso: gosto mesmo mais é da outra parte... Quero mais é que ela sobreviva e vença a batalha!

Lá vem você pensar em voz alta: a Vivi ficou louca de vez!!

Fiquei não, amiga... Sempre fui. É que você se acostumou com a outra. Quer apostar??

terça-feira, maio 16, 2006

Muito bom te ver

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Foi muito bom te ver hoje...
No meio do caos desse dia, sua visão, pra mim, foi como um bálsamo, uma luz no fim do túnel.

Curiosa a minha reação.
Alguém falou seu nome, eu levantei a cabeça, te vi de longe, no meio da roda, e sai num impulso, meio sem pensar, pra simplesmente te falar oi.

...e o abraço foi tão inevitável, e foi tão sincero, e tão bondosamente quente....

Foi muito bom te ver hoje...
No meio do caos da minha vida, sua visão foi um alívio, uma lembrança do que é honesto e bom.

Curiosa a minha sensação.
Pensar que, a partir de um impulso, veio um sentimento tão leve! Depois do abraço um certo constrangimento, ninguém a entender nada, mas a saudades batendo forte, querendo falar mais.
...e o dia que estava amargo, e tão confuso, ficou um pouco mais doce e compreensível...

Foi muito bom mesmo te ver hoje!

Sei que esse não é o seu melhor momento, mas também não é meu.
Mas talvez essa seja a nossa magia.

Porque, ao te ver, e te ouvir, hoje eu senti vontade de rir sem parar.

Talvez porque você tenha sido um exemplo sempre.
Talvez porque você nunca tenha me condenado por nada.
Talvez porque você tenha entendido o que parecia incompreensível.
Talvez porque você nunca tenha deixado de ser você.

sábado, maio 13, 2006

Monte de coisa alguma

(Aviso aos navegantes: esse texto vai ser um saco para quem não tem saco para bobagens e divagações. Melhor não ler. O próximo, prometo, será melhor)

Chego em casa nessa madrugada, não faz nem uma hora que sai da frente de um micro, e tudo em que eu penso é em me conectar de novo. Eu devo estar ficando retardada... Mas não consigo parar de pensar... e respirar fundo... e relaxar.

Devia chegar louca pra ir pra cama, deitar com as duas criaturas que lá me esperam, e que amam, e que me querem, mas eu não consigo... Minha cabeça vai a mil por hora, enquanto meu corpo dói de ponta a ponta.

Mas não penso nada que preste. Nem consigo escrever nada que valha. Me sinto fria como um iceberg, oca e mergulhada numa escuridão que não tem fim. Mas sem culpa. Quem quiser, que me leia e me escute. Tô me lixando.

Solidão...

Outro dia a Bia, com seus 5 anos, me disse que estava só. Dei risada e ela me disse: Estou sozinha de você, mamãe... sozinha de você... sozinha de você... Não consigo esquecer essa frase. Mas não tenho nada pra fazer com ela. Talvez porque me sinta sozinha de mim há muito tempo.

Aqui na frente dessa tela, bebendo minha cerveja Itaipava numa tentativa inútil de tomar um porre, nesse delicioso silêncio da madrugada... Lá fora uma bela lua, o frio de novo seco... Aqui dentro, uma dor sem fim...

Hoje, eu me dei ao direito de mudar todas as rotinas e quebrar todas as promessas. Levei a Bia na escola, cheguei no jornal depois das duas, não fui beber com a Dani, não fui na festa do Hugo, não voltei pela avenida dos Estados, corri na Anchieta, reduzi em Santo André, cheguei em casa pela rua de cima... Tudo diferente pra ver se algo muda, se um milagre acontece...

Mas nada muda.

Daqui um mês faço 40...

É engraçado como esses dois algarismos têm mexido comigo. Quando penso neles e olho pro espelho só vejo marcas, manchas, fios brancos e olheiras. E sei que nem é tudo isso. Mas é isso que enxergo. Tenho impressão de que no dia 13 de junho, um dia depois do Dia D, vai estar tudo caído.

Por dentro, ironia, minha percepção do mundo e de mim passa por um revolução. Uma revolução que me dá medo... Que não sei se vou ver o fim. O fim...

Agora é o fim. Vou dormir.

quinta-feira, maio 11, 2006

Verão Inverno

Eles se conheceram no réveillon, o melhor réveillon de suas vidas. Corpos morenos do Verão, roupas brancas, Copacabana inundada de gente, velas e flores para Iemanjá. Depois, festa com gente descolada. Ela o viu enquanto ele já a examinava. Ela tão linda, com um decote tão bondoso e uma saia tão curta, que sabia: era a caça e também caçava. Ele, voraz, só se aproximou e falou. O jogo estava ganho.

Fim de festa, ela nem se importou com seus amigos. Foi com ele pra praia, molhar os pés no amanhecer. Seguiram pra algum apartamento, que ela nunca saberia dizer onde era, entraram em um quarto e se afundaram no colchão que estava jogado no chão...

No meio da manhã, ela pegou suas coisas e saiu, como uma anônima, mas levou o número de um telefone marcado em um pedaço de guardanapo de papel. Pensava: "Ligo pra ele depois". Chegou de táxi em São Clemente, na casa dos amigos, com as sandálias na mão. Feliz, dormiu e acordou debaixo do sol. Aí veio a notícia: "Você não tem mais nenhum dia aqui."

Atordoada, percebeu que o guardanapo se perdera, talvez no táxi, talvez no banheiro, talvez na sua bolsa. Queria vê-lo mais uma vez. A amiga ligou, então, para uma conhecida, que ligou para uma prima, que também estava na festa, e conhecia o dono da casa, que sabia qual de seus camaradas havia levado lá aquele cara, que entrou sem convite. Uma hora depois, seu telefone tocou. "Vamos sair hoje mais uma vez?"

Foram jantar. Passearam pelas calçadas da Lagoa, de mãos dadas, como velhos namorados, ficaram mais uma noite e fizeram todas as promessas que não devem ser feitas nunca a ninguém. E na manhã do dia seguinte, ela partiu. Mas ele não sumiu.

Telefonemas, e-mails, cartas, cartões, tudo dele a alcançava. Nos primeiros meses, ele saia do Rio para visitá-la em São Paulo e os dois curtiam a vida em quartos de luxo nos hotéis de várias estrelas da cidade.

No Carnaval, ele alugou uma quitinete em Copacabana. Levou os dois filhos: era um casal. A menina tinha 15 e o garoto, 5. Passaram, felizes, o feriadão, passeando entre travestis e transformistas na orla da praia, dançando em bailes chiques, comendo com as crianças em lanchonetes festivas, mas dormindo amontoados na falta de espaço.

Na Quaresma, porém, a vida começou a mudar. Porque a Quaresma trás o Outono e no Outono o tempo esfria e as folhas e as máscaras começam a cair. Algo não ia bem. Os contatos eram estranhos. Na Páscoa, ela mentiu para os pais e viajou de novo para o Rio. Lá, nada de intimidades em hotéis simpáticos ou aps emprestados. Ficaram no quartinho de empregada que ele alugava no apartamento de um velho casal, do lado de lá do túnel, muito longe da praia.

Como sempre, colchão no chão. Mas, desta vez, ele deitou na cama.

Foi aí que ele lhe deu a sua facada: "Se você mente para os seus como vou ter certeza que não mente pra mim?". O ataque enjoou o seu estômago, amargou a sua boca e ela chorou sangue de raiva. A desconfiança é péssima companhia do amor. Ela voltou pra casa, desanimada, mas ainda com esperança de que tudo não passava de um dia ruim.

A vida seguiu e ele voltou para São Paulo, para a casa de sua mãe. Começaram a se ver em hotéizinhos modestos e decadentes do Centro da cidade. Ele havia perdido o emprego no Rio e ela decidira mudar de emprego em São Paulo. Ele não gostou. Ela nem ligou. A opinião de seus parceiros nunca a fez parar. Foi por essa época que ela começou a organizar sua festa de aniversário. Comemoraria os 22. Ele já tinha 30.

Festa no sábado. Ela morava no Tatuapé. Ele no Capão. Apareceu com um amigo esquisito num Corcel preto. Ela não gostou. Mas foi simpático e, ela pensou, tudo ia dar certo. A festa correu bem, amigos e mais amigos, ele não se enturmou e partiu cedo: "Nos vemos amanhã".

O dia importante era o amanhã. Domingo. Era o dia do aniversário dela. Ligou pra ele: "Vamos sair?". "Não, vem pra minha casa". Ela não sabia onde ele morava. Ele explicou e ela pegou o ônibus e depois o outro ônibus, até o ponto final, no bairro humilde da Zona Sul.

Já era Inverno. Pouca gente na rua e o frio congelava os ossos de todos. Na pequena casa, a mãe fazia coxinhas pra fora, enquanto ele, dois irmãos e as duas crianças se amontoavam embaixo de cobertores velhos em dois sofás comprados nas Casas Bahia. Todos assistiam Silvio Santos. Ela entrou e ninguém se mexeu. Nem ele.

Ficou lá, na cozinha com a velha senhora, ele vendo TV e a tarde passando. E ela se perguntando o que fazia lá!

Quase noite, ela decidiu partir. E pediu: "Você me leva até o terminal?" Ela tinha medo daquele lugar onde estava, do lugar onde ele morava. Não queria sair de lá sozinha. Mal-humorado, ele trocou de roupa e foi com ela. Quase uma hora até o terminal, os dois nos últimos lugares do ônibus que sacolejava em ruas esburacadas. Eles conversavam, mas não se entendiam.

No terminal, ele já grosseiro, ela olhou aquele chuvisco cinza, e finalmente percebeu que se cansou de ter esperança. Olhou pra ele com um certo prazer... Ali chegara a sua vez de dar o troco. Ia dar-lhe uma bela facada. Estavam no meio da plataforma. Ela tinha cara de anjo e ele não esperava isso dela. O acertou no meio do peito e disse "foda-se", virou as costas e o largou lá, deitado no chão que tanto gostava, sangrando.

Nunca mais soube dele. Ele nunca mais soube dela. Os dois pegaram seus ônibus e choraram até chegar em suas casas. E depois, simplesmente, se esqueceram.

sábado, maio 06, 2006

O tempo

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O tempo pode ser o melhor remédio, mas também pode ser nosso pior carrasco.
Tenho pensado muito no tempo...

Ele pode clarear nossas idéias, fortalecer relações, pacificar ressentimentos, aliviar paixões...
Mas também pode aumentar dúvidas, aprofundar separações, intensificar mágoas, endurecer ódios.

Sempre busquei no tempo o momento imediato. Minha relação com ele sempre quis ser rápida. Mas, ironia, o tempo nunca me levou a sério.

Meus passos parecem ágeis, mas quando percebo andei muito devagar...
O tempo exercita a minha paciência e eu sou obrigada a me curvar a ele...

O que mais temo no tempo é o esquecimento, apagar da memória os detalhes preciosos dos momentos.

Hoje, nesse exercício de escrever, muito do que me move é a tentativa de registrar, não deixar passar, não permitir o esquecer. Porque acho que já esqueci muita coisa nesta vida. E não quero mais esquecer.

terça-feira, maio 02, 2006

Jéssica

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A Jéssica passou em casa no último domingo. As visitas da Jéssica sempre me deixam desconcertada. Tudo porque eu não sei mais o que fazer... Sua visão me pesa na consciência...

A Jéssica freqüenta minha casa há uns 3 anos. Bateu lá a primeira vez para pedir. Sua vida é pedir. Sua família só sabe pedir. Contam no bairro que a avó dela, Cícera, era o tipo de pedinte às antigas, que todas as donas-de-casa ajudam. Até que Cícera sumiu e seu filho, dias depois, apareceu com cara triste, contando que a mãe havia morrido e que ele não tinha dinheiro para pagar o enterro. O bairro se sensibilizou e todos que sempre ajudaram Cícera deram dinheiro para o seu enterro um pouco mais digno. Mais algumas semanas depois a Cícera volta a pedir pelas casas, muito viva!! Não sabia que estava "morta". Seu filho enganou todos... Esse homem é o pai de Jéssica.

Me sensibilizei de cara com a menina. Começamos a conversar e ela passou a confiar em mim. Sempre vinha com um irmão ou irmã mais novos. No começo, achei que poderia mudar a vida da garota com conselhos, cadernos, livros, palavras, incentivos. Mas sempre lhe dava também comida. A Jéssica e os seus estão sempre com fome. Devoram com gosto as xícaras de café com leite, pão com manteiga, bolo e bolachas.

Para ajudá-la a encontrar um caminho que não passasse pela mendicância, passei a comprar dela bombons. Primeiro, ela pegava de uma vizinha, depois passou a fazer ela mesma em casa. Ajudei a comprar o primeiro material...

Também dei-lhe um pito, para ela não pedir por aí. Percebi que a mãe a obrigava. Disse para a sua mãe que a ajudaria, mas se descobrisse que estava mendigando a entregaria (a mãe) para o Conselho Tutelar. Liguei para a sua escola, tentei mobilizar meio mundo....

Mas a vida da Jéssica é tão difícil... Todas as tentativas se perdem... Fazer bombons, por exemplo, não deu certo... Com sete crianças em casa e geladeira vazia, o chocolate desaparecia sem ela perceber.... Um sábado a flagrei na rua de cima, sentada na calçada com uns quatro irmãos, comendo algo que alguma casa tinha dado. Parei o carro, a chamei, ela ficou branca... Sabia que eu havia descoberto que ela ainda pedia... Como endurecer com a criatura???

A Jéssica é a mais velha de sete irmãos. Quando a olho vejo com vergonha tudo o que falta neste país. Mora num barraco numa favela. No último verão, numa tempestade, um barranco caiu sobre o barraco, que foi destelhado. A prefeitura até refez a cobertura, mas quando chove tudo inunda de novo, por causa das goteiras.

A mãe e o pai nunca se preocuparam em evitar filhos... Meu Deus, prá que colocar oito no mundo!!! De vez em quando, a mãe trabalha em uma frente de trabalho do estado ou da prefeitura e consegue ganhar um salário mínimo. Mas são oito filhos, mais o marido que bebe, mais a sogra Cícera que não pode mais pedir como pedia antes....

A Jéssica sempre diz que a família não tem dinheiro para comprar o gás de cozinha. E ela sai de casa em casa pedindo para as pessoas o dinheiro do gás. Deve mentir... Percebo que tem vergonha de pedir tudo o que precisa... Mas, quando falta mesmo o gás, a mãe acende uma fogueira para fazer a comida, e os vizinhos por motivos óbvios a obrigam a apagar. Não tem coisa pior que fogo em favela.

A Jéssica não consegue ir além na escola. Há anos está na oitava série. Hoje está com 17... A escola diz que a "família é totalmente desestruturada".... Duvido que algum professor, um dia, tenha olhado pra ela...

Outro dia apareceu de noite em casa, no meio da chuva, com um amigo. Eu não estava, meu marido os colocou na varanda, perguntou se queriam comer algo, o que precisavam e mandou me esperarem. Não aceitaram a comida, mas esperaram a chuva passar e desapareceram na noite.

É uma menina angustiada, triste, que sempre parece ter um nó na garganta, uma vontade de chorar e de gritar que não quer essa vida. Parece que sabe que tem um destino de pobreza, e não consegue uma forma de se livrar dele... E eu acho que nunca conseguirei ajudá-la... a Jéssica.

sexta-feira, abril 21, 2006

Só posso te escutar

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Inconsciente, na mesa de cirurgia, você balbuciou o meu nome?!
Você está enlouquendo...
Você me ama, mas o que posso fazer por você?
Só posso te escutar... e te compreender.
Este é o meu limite.

Observo imóvel todas as tuas tentativas de me tocar.
E me esquivo.
Escuto quieta todas as tuas palavras de carinho.
E também todos os seus desejos obscenos.
Mas tudo o que posso fazer é escutar.

Sei que isso não serve para você.
Mas você tem que saber que eu não sirvo para você.
Eu só entendo a sua loucura.

Porque também sou capaz de ser tão obsessiva.
E já cheguei bem próximo da loucura, como hoje você está.

Mas aprendi.
Hoje eu posso até chorar.
Talvez eu chore como você na única vez que me escreveu.
Mas nunca, nunca vou enlouquecer por amor como você quer enlouquecer.

quarta-feira, abril 19, 2006

O desafio

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A Marina desafiou e eu aceito de bom grado.
A brincadeira é a seguinte: confessar cinco manias e passar a bola pra outras cinco seguirem.
Vou atrás dos passos da Marina e passo a bola primeiro: Dani, Ana, Sandra, Del e Nadia. Coloco seu link, Dani?

A próxima etapa é mais difícil: selecionar as manias. Porque mania é vício e virtude que nem sempre a gente está disposto a reconhecer. Por isso, demorei pra responder.
Então, vou começar com as mais básicas e termino com as mais vergonhosas de confessar. Mas vamos lá:

1 – Eu não saio de casa sem brincos. Sem eles me sinto nua. Mesmo atrasada já cheguei a voltar pra casa para colocar brincos esquecidos em cima de alguma cômoda. Já comprei pares na rua ao perceber que estava sem. E, de vez em quando, ando com pares sobressalentes na bolsa para não correr nenhum o risco.

2 – Eu sempre passo batom no trânsito. Dentro do carro, parada no farol, na direção ou não. Raramente saio de casa com lábios pintados. O batom é quase um equipamento do carro. E, ao colorir os lábios, lembro automaticamente da personagem da Isabela Garcia na novela Bebê a Bordo, novela babaca que eu não consigo esquecer. Tudo por causa de um namorado na produção (ehhrrr!!). A garota passava batom no ônibus sacolejante e não borrava nada. Que inveja! Só na novela mesmo!

3 – Eu durmo de meia. Podem rir à vontade. Adoro uma meinha. Uma vez, fui dormir na casa da Beth e esqueci a meia. A menina morava do lado do zôo e fazia lá um frio daqueles. Aí, pedi a meia. Morrendo de rir, ela me emprestou um par do marido, que não estava lá. Só deixo as meias de lado se o calor está infernal. Ou se... bem, essa é outra história.

4 - Eu encaro as pessoas na rua. Mania de criança. Lembro do meu pai na feira me dando o maior bronca: ‘Menina, para de encarar os outros. Qualquer dia você vai levar uma na orelha’. Mas não consigo parar. É como se eu procurasse incessantemente alguém que não sei quem é. Sempre olho pra perfis, na esperança de ser um velho conhecido, um velho amigo, um velho amor. Quando alcanço os olhos da pessoa, o estranho, disfarço rapidamente, viro a cara, como uma imbecil. Dá pra contar nos dedos o número de vezes que encontrei alguém assim.

5 – Eu sempre imagino a morte das pessoas que amo. Mania esquisita. Já me achei maluca por causa disso. Agora, nem ligo mais. Sinto minha reação e depois penso na minha própria morte, de como as pessoas reagiriam. Isso parece pesado, e deve ser mesmo. Mas também é uma mania de criança. Comecei pensando na morte de meus pais, depois na do meu irmão... Cresci e a morte de meus melhores amigos e amores passaram a fazer parte dos meus pensamentos. Há tempos conclui que é uma forma de preservar quem eu amo e desencanei. Deixo o pensamento mórbido vir e espero que ele passe rápido. Com quase 40, é impossível impedi-lo. É como se eu, imaginando a morte de quem amo, a evitasse. Só uma morte eu não ousei imaginar. E essa foi a única que me atingiu.

segunda-feira, abril 17, 2006

O nome da coisa

Hipoglicemia reativa. É este o nome da coisa.

Não é doença. É um problema. Graças a ela tenho deliciosas tonturas, como se sozinha eu tivesse bebido uma garrafa de bom vinho, mas nas horas mais impróprias. Deliciosa tontura que não posso ter.

Acontece por causa de uma confusão entre insulina e glicose dentro do meu corpo. O organismo não consegue absorver o açúcar com a rapidez necessária. No limite, vira diabetes. No meu caso, está controlada, mas a taxa precisa continuar a cair.

Hoje, enquanto a médica ia me explicando o que acontece, tentando fazer com que eu entendesse a relação entre insulina e glicose, e como eu tinha conseguido baixar a taxa desde a última consulta, eu só pensava nos cinco ovos de chocolate que a Bia ganhou na Páscoa. E pensava mais ainda no pedaço de bolo de pêssego que deixei na geladeira.

Eu ainda tentei argumentar: "Então, o ovo de chocolate..." E ela me cortou: "Ovo de Páscoa nem pensar", respondeu a insensível. E eu pensei: "Foda-se. Vou comer é aquele bolo".

Nem perguntei pra ela da cerveja. Pelo menos as destiladas devem estar liberadas.
Quanto ao bolo? Bem, este já era.

Breve nostalgia

Hoje acordei meio nostálgica.

Não devia. A lógica indicava um dia triste, deprê mesmo. Afinal, ontem sai do jornal quase meia noite e menos de oito horas depois já tinha que estar lá de volta. A manhã estava cinza, fria e chovia. E eu, atrasada.

Mas, mesmo com tudo contra, amanheci com aquele leve bom humor, uma doce nostalgia, e lembrei dos meus amigos.

Penso que passamos por amigos ao longo da vida. Há sempre os bons, os muito bons e os dispensáveis. Há aqueles que, ao cruzarem com você, te acompanham para sempre, sem perder um capítulo de sua vida. E há os que nunca serão amigos de verdade: serão só personagens, às vezes até importantes, mas de um período.

Mas hoje lembrei-me dos meus amigos de alma. Que todos os outros me perdoem. Mas há pessoas que conhecemos e passam a fazer parte da gente.

Gosto de pensar que são meus amigos de alma porque me enxergo neles. Uma reação, um jeito de olhar ou falar, um movimento de corpo, tudo é familiar. Sei quem sou através deles. E sei o que eles dizem através de mim. Às vezes nem precisamos falar. Apenas sabemos uns dos outros. Esses são amigos raros.

É um grupo que teve sua base forjada nos mesmos sonhos. Não importa se os sonhos não viraram realidade. Não importa se ficamos anos sem nos falar. Quando nos reencontramos, é como se o tempo não tivesse passado. E quando estamos juntos, somos um só. "É sua turma, querida", diz a também querida Ana.

Ao reencontrá-los, volto a me entender. O que é confuso, fica límpido. E o coração que pesa, deixa de pesar.

terça-feira, abril 11, 2006

Um dia

de manhã...
o corpo deitado na cama...
a brisa batendo nos seios...
os sons da casa:
o cachorro comendo
alguém no banheiro
a respiração da criança
o tictac...

os sons da rua:
ônibus
caminhão
latido

a nuca, as costas e os pés nos lençóis...
o cabelo molhado...
um pezinho infantil na costela...

à tarde...
só tensão, raiva e dor

à noite...
o peso do corpo sobre os ombros

abro os olhos e vejo:
unhas dos pés pintadas contra um teto manchado

relaxo
respiro
te abraço

sábado, abril 08, 2006

Transbordar

Estou transbordando...
Transbordando de sentimentos e sentimentalismos

Penso em você a cada minuto
Acordo e durmo com você no meu coração, a meu lado, na minha mente

Um sentimento tão bom, tão simples, tão meu
Sentimento que não sei nem se quero compartilhar com alguém

Que me esquenta por dentro, que me deixa toda dolorida, com uma vontade louca de chorar, mas sem lágrimas para derramar

O que é isso? É o mais puro amor que pode existir, eu sei
Amor que parece não ter espaço na vida real

Só sei que, quando te vejo, o que parece que vai explodir, de repente se acalma, sem pressa de acontecer

segunda-feira, abril 03, 2006

"Quem é você?"

Eu perguntei no meio da escuridão.

Você apareceu não sei de onde e tentou me arrancar do meu esconderijo...

Eu lá, atrás da coluna negra, encolhida, nem vi teu rosto.
Senti teu abraço, teu calor, tua barba mal feita roçando o meu rosto e ouvi seu apelo: "Sai daí".

Mas te senti e não te vi. Não te reconheci.
Os meus olhos estavam encharcados, os meus óculos embaçados e minha maquiagem já devia estar borrada.

Você tentou me tirar de lá...

Você me seguiu? Como descobriu que estava ali? Ninguém mais me viu...
Meus íntimos não me viram.

Sai do meio daquela multidão sem dar sinal a ninguém...
Fui me afundar em um lugar só, a batida fazendo vibrar meu corpo... esquecer...

"Sai daí", você pediu. "Eu nem sei quem é você", retruquei.
"Eu não estou te dando uma cantada".
"Eu sei".

Eu sempre soube...

domingo, abril 02, 2006

Pelo menos um fruto

Se esse blog não virar nada, se acabar apenas se transformando em um painel de palavras soltas, sem sentido, ou com sentido apenas pessoal....
Se esse blog um dia eu apagar e esquecer, pelo menos um fruto ele teve: de tanto encher a Dani , ela também voltou a escrever.
Estão, aí vai mais uma dela. Um poema que eu não sei o título:

"como se estivesses junto a mim, eu te saúdo.
não ouso olhar de lado,
para que eu não fique de frente com a verdade

ensaios de um sorriso amargo e fútil,
o faz-de-conta, a insistência, o inútil passatempo.
a impaciência disfarçada em letargia.
um vago olhar que não admite a agonia.
a mesma sala, a janela, o mesmo canto.

silente canto a madrugada principia.

em vão o desdenhar. nada convenço.
é tudo aqui. é tudo imenso. tudo agora.

se calo, a minha mente me ignora.
e embora não lamente, sei que falo.
inalo o que evapora do ambiente,
outrora tão da gente a perfumá-lo

te trago mais pra mim, no pensamento,
e invento que o presente é o passado,
que a chuva na janela não existe,
que o beijo inda divide o mesmo trago,
as mãos não se deixaram à própria sorte,

que a fala vem da mímica das línguas bailando pela química das bocas,
que as pernas se assemelham aos nossos braços no tanto dos abraços que nos
damos, que os olhos que são teus, são meus iguais, pois vêem só nós dois e ninguém
mais

...tudo o pensamento dulcifica.
mas o que fica é esse gosto amaro
pela certeza de um não-momento
contando o tempo de uma noite em claro."

sábado, abril 01, 2006

O esconderijo perfeito

A Bia sempre me faz voltar ao passado. Me faz voltar a uma época da qual eu lembro pouco, não porque não queira, mas porque perdi o estímulo de ficar lembrando. Mas ela, a pequena tirana de 5 anos, sempre quer que eu volte: “Mãe, me conta história de quando você era criança”, ela pede, derretida, pra eu contar pra ela a minha história, que é a sua própria história, tão singela, sem nada demais, como tantas outras histórias de crianças nesse mundo. Mas essa é a nossa, o que a faz única e importante.

Outro dia escarafunchei a memória para contar-lhe o pouco que guardei da minha avó. Minha avó que morreu quando eu tinha pouco mais de 4, ela não tinha nem 60, mas de quem eu tenho as mais doces lembranças. Ela era miúda, mais ainda que eu, diz meu pai, mas pra minha visão infantil ela era muito grande. Fecho os olhos e sinto ainda seu cheiro acre, a vejo pela cozinha mexendo nas panelas, sinto o gosto de sua macarronada com carne moída e me vejo encantada com a cor de seu arroz com colorau.

Me colocava em cima de um cadeira pra consertar minhas roupas (eu ficava da altura dela) e dizia “Quieta, menina, senão eu te espeto”, enquanto ajeitava a barra no meu vestido que nunca era novo, era sempre reformado de alguma menina mais velha... Lembro de seu cabelo armado e cinzento, de suas mãos morenas e enrugadas, dos seus óculos, da sua saia abaixo do joelho, também cinza....

Mas lembro principalmente de vê-la chegando em minha casa. E é a história predileta da Bia, que morre de rir quando eu conto, talvez porque nessa hora ela imagine que é exatamente como eu era.

Morávamos em um sobradinho no fim de uma vila particular na Água Rasa (nome sempre intrigante e sonoro pra mim... Água Rasa... Rasa por quê? Qual riacho deveria ser esse, em que canal de esgoto deve ter se transformado...).

Meu quarto tinha a janela pra frente, meu castelo, de onde eu via a ruazinha de paralelepípedos que levava até o pátio final da vila. Daquela janela eu via aquela figura miúda e gigante chegando, seguida pelo moleque de cabelos raspados na nuca, como se usava naqueles tempo, bermuda nos joelhos, camisa branca e óculos de aro preto, meu tio Carlinhos, irmão caçula do meu pai, que era o irmão mais velho.

Só aquela visão já me excitava, me enchia de felicidade. Vê-la da janela, preparar-lhe uma surpresa.... A avó vinha nos ver, eu e meu irmão mais velho. Mas hoje acho que vinha principalmente me ver, a única menina daquela mulher que tinha tido cinco filhos, todos homens, e que tinha tido o infortúnio de perder a primeira vida feminina com seu sangue (minha irmã), morta na mão de um médico famoso, mas inábil.

Aquela bebê que morreu poderia ter permitido a ela, mulher-avó, realizar seu provável sonho de costurar vestidinhos com rendas e comprar bonecas e exercitar mimos delicados. Porque os meninos deviam ser criados com mais dureza e as meninas podiam ser sempre mais delicadas. A menina aliviaria a aspereza de sua vida.

Mas a morte inesperada adiou seu provável sonho em seis anos, até que eu nasci, num mês de muito frio. E fui mesmo muito mimada na infância, por avós, tios e tias... Sempre por ser mulher e caçula e miúda e rouca e por andar na ponta dos pés. Cada ano, enquanto eu crescia, sempre havia um novo motivo para um pouco mais de mimo....

Mas era a minha avó chegando naquela viela e eu me escondia no melhor lugar da casa: embaixo do lençol. É engraçado como acreditava que desaparecia. As crianças acreditam. A Bia repete a brincadeira e acredita... Mesmo sob o lençol, a cama, pra criança, é lisa, sem rugas ou obstáculos. E eu ficava na expectativa ouvindo seus passos subirem a escada, e minha avó entrava no quarto, e perguntava por mim, e alguém dizia que eu tinha saído, e ela se sentava sobre mim, e eu ria, e dizia “Vó, estou aqui”, e ela se fingia de surpresa e ria, e nos abraçávamos e beijávamos, e, e, e.

Não sei por quê, mas dia desses contando essa história pra Bia não consegui deixar de chorar (choro agora ao escrevê-la). Deitadas na cama, a Bia gargalhando e as minhas lágrimas escorrendo sem parar, sem que eu conseguisse evitar... “Por que você está chorando, mãe?”. “Acho que é saudades da minha avó, Bia”.

Ela não disse mais nada, não perguntou mais nada, só ficou me olhando, com aqueles olhinhos de jabuticaba. E eu achei bom. Não saberia explicar se é saudades da avó, bisavó dela, ou daquela menina que tinha talvez 3 anos e que acreditava que o lençol sobre ela era o esconderijo perfeito. Porque os esconderijos perfeitos não existem. E também não existe mais a menina. Existe só alguém que eu sempre achei que conhecia, mas que me surpreende a cada dia.

domingo, março 26, 2006

Na beira do rio

Essa semana que passou, por uma daquelas coincidências da vida, me senti perto da morte duas vezes em um mesmo dia e pelo mesmo motivo. Não que ela tivesse me ameaçado de fato. Mas é a imaginação, a insegurança e o medo que nos faz senti-la por perto.

Foi na segunda-feira. A primeira vez veio num pesadelo. Eu dirigia na Avenida dos Estados, meu caminho diário para o trabalho, quando por impaciência resolvi ultrapassar o carro da frente. A falta de paciência é o meu ponto fraco, onde a vida mais me testa. Por mais que eu queira tudo com urgência, tenho sempre a impressão que a vida trabalha muito devagar comigo.

Então, fui tentar ultrapassar o carro da frente, meu carro se precipitou para ao rio e voou sobre ele. Via o rio podre embaixo de mim e eu, desesperada, tentando virar o carro para a direita, como se ele fosse um avião, mesmo sabendo que minha imprudência faria eu me esburrachar sobre outro carro.

Era como se o sonho me mostrasse que, com a minha pressa para coisas da vida, eu estava prestes a cair no esgoto, morrer e matar (Nossa!!! Como fui dramática agora!!! mas não vou apagar o já escrito não...). Minha alma, então, literalmente caiu no meu corpo, que já nem respirava na cama de tanto pavor. Acordei num susto. Eram umas 3h da manhã. Suava frio e dormir de novo foi um sacrifício.

A lembrança do pesadelo me acompanhou durante todo o dia. Coisa difícil. Sonhos normalmente não me abalam. Mas esse... À noite, uma tempestade caiu na cidade. Lembrei da madrugada, do pesadelo, das enchentes do Tamanduateí e resolvi ser prudente. Esperei. Sai do jornal bem tarde e segui meu caminho.

Em Santo André, o chuva voltou a apertar, mas achei que estava tudo bem. De repente, na mesma beira do Tamanduateí, percebi que estava no meio da água. Um carro passou ao lado e aquele aguaceiro fedendo esgoto me cobriu até o teto. Há tempos não passava tanto medo real.

Foi só então que olhei para o rio. Ele estava no limite do transbordamento. Acho que rezei por todos os deuses, santos e anjos. Se transbordasse, eu não conseguiria rodar. A água (jogada pelos carros que passavam ao meu lado) ainda me cobriu mais duas vezes. A cada vez era como se eu estive dentro de uma onda. Quando saí daquele trecho, fiquei imaginando que o cheiro de esgoto ia ficar no carro o resto da vida. Mas não ficou. A chuva lavou antes mesmo de eu chegar em casa.

Sempre me perguntam porque insisto no caminho na beira do rio. Amigos e parentes preferem a Anchieta ou até mesmo o centro de São Caetano. Eu continuo a insistir na feia Avenida dos Estados. Conheço cada um de seus buracos. Mesmo com a chuva, não gosto de fazer outro caminho.

Acho que é o rio. Segui-lo me faz bem. Ele hoje é um esgotão, eu sei, todos sabem, mas acho que, numa emergência, posso pegar uma transversal à direita e me safar. A Anchieta me parece um deserto se tiver que parar no acostamento. São Caetano é como um cenário. Também evito cruzar a Heliópolis, quando lembro que foi lá que passei o primeiro arrastão de minha vida.

Ultimamente, de tanto que insistem, até tenho testado outros caminhos. Outro dia, peguei a esburacaba Presidente Wilson e depois a nova avenida, que cruza a abandonada indústria Matarazzo. É como cruzar uma cidade fantasma. E, no final, a gente cai de novo na Avenida dos Estados, onde eu me localizo, sem medo.