sexta-feira, julho 28, 2006

O trapo

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E Maria se transformou num trapo humano.
Sua pele como que se descolou dos seus ossos.
Se escuta, não escuta.
Parece que escolhe o que escutar.

Ou prefere fingir que ninguém fala
para também não precisar falar.
Nada mais lhe pertence,
mas também não se pertence mais.

Roupas largas,
peças desconexas,
nos pés só chinelos.

Me pergunto onde está Helena?
Que um dia foi a temida,
que um dia foi a raivosa,
que um dia foi a querida.

Ninguém quer mais Maria.
Mas ninguém pode querê-la mais.
Vários tentaram. Ela não deixou.
Agora ela é só.

E, só, se esbofeteia,
faz seus olhos ficarem roxos,
pontos na testa,
desequilíbrio,
tropeções incalculáveis.

Às vezes foge,
talvez porque também tenha um lampejo e procure por Helena.
Talvez...

Em qual momento da vida de Maria Helena a deixou?

Helena,
a das pernas belas,
a da bicicleta,
a da prancha,
a da praia,
a dos cabelos sempre pretos.

Olhos parados,
corpo parado,
boca caída.

Sua imagem.

Um trapo essa Maria.

Deserto

É um lugar onde nada falta e tudo falta.
Sobra tempo nas nossas vidas de lá.
Lugar onde o dia leva um mês para passar e o tempo de um dia é uma hora eterna.
Onde a vida parece outra e me transforma em outra.
Lá eu nem sei o que sou.
Alguém que não sabe onde está. Alguém que não tem o que o fazer.
Alguém que é muito, mas não o que o olho alheio vê.
Lá é um lugar que não se move, um lugar adorável que me paralisa.
Onde as crianças estão para brincar e os velhos para morrer?
Não. É o lugar onde as crianças e os velhos estão para viver.
Viver como não poderiam em nenhum outro lugar. Lá estão em paz.
Mas tristemente é um lugar onde os jovens estão para desprezar e as mulheres maduras para lamentar. Os homens maduros? Eles nem existem lá. São fantasmas ou exceções.
É um lugar que está fora do mapa, que se esconde do mundo.
Um lugar quente como o inferno e silencioso como o alto mar.
Aliás, não deveria existir um lugar tão quente tão longe do mar.

sexta-feira, julho 14, 2006

Os pés de Flora

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De todas as histórias que já ouvi sobre dormir de meias a mais curiosa foi a de Flora. Minha amiga conta que dorme de meias desde os 20 e poucos por causa de um amor, talvez o único de sua vida. Ela se ilumina quando conta que o amava perdidamente. Que o sexo era ótimo, mas que, depois do rompimento, o que nunca conseguiu esquecer foi daquela sensação dos pés do outro nos seus pés. "Era como se quatro pés fosse um único pé", diz.

Se peço pra ela contar, fecha os olhos e parece até que entra em transe. Ao lembrar, diz que sente imediatamente o volume e o frio dos pés do outro, a aspereza dos seus calcanhares masculinos, o toque das unhas mal aparadas e até o roçar dos pelos que ele tinha sobre o peito do pés. E, já aos prantos, diz que só deseja que ele também suspire com a lembrança de seus próprios pezinhos delicados, número 34.

E foi por isso, diz, que passou a dormir de meias. A cada namorado, a cada amante, mais que sexo bom, o que procura é a mesma sensação nos pés. Por isso no primeiro encontro nunca usa as meias. É a esperança de reencontrar o que alimenta a sua loucura. Mas, a partir do segundo encontro, colocá-las é inevitável. É como um impulso que Flora não consegue evitar.

E é por isso, diz, que sempre está só. Os homens com quem sai nunca conseguem satisfazê-la. Acham a meia brega. E não usar meias lhe dá náuseas.


Mas, penso, eles até devem ter razão! Imagina só, no meio da empolgação, nua em pêlo, a mulher sempre pára tudo, abre bolsa, cata um par de soquetes e veste. Sem dar explicação.

quarta-feira, julho 12, 2006

A machadinha

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Hilda tinha uma machadinha. Ganhou de presente do Doca. Mas não foi um presente qualquer.

Não que ganhar uma machadinha de presente do marido seja coisa comum. Mas poderia ser um presente digamos... terno, carinhoso ou até exótico se o marido tivesse ido até uma loja, olhado cada objeto com atenção e escolhido o que mais refletia o amor que sentia pela mulher.

Mas não foi assim. Hilda foi quem pediu a machadinha. Pediu não: exigiu.

Quis a machadinha quando descobriu que Doca a traia. Pois ele de birra foi à loja, escolheu um belo exemplar, de cabo vermelho, amolou bem amolado e levou para a mulher. Ela recebeu, não agradeceu, enrolou em um pano de pratos e guardou no meio de suas calcinhas. "Eu ainda te mato com essa machadinha!", declarou.

A traição foi assim: o casal e dois filhos viviam numa cidadezinha da Paraíba. Já tinham passado por São Paulo, guardado algum dinheiro e como boa parte dos migrantes resolvido voltar pra terrinha. Depois de um tempo, o calor, o ócio e a falta de dinheiro voltaram a apertar e eles decidiram apostar de novo no Sul.

Diferente da maioria dos casais, foi a mulher quem voltou pra São Paulo. Tinha contatos, antigas patroas e, avaliou, podia conseguir um emprego primeiro e preparar o retorno da família.

Mas a solidão é um osso difícil de roer para o homem que adora dizer que é macho. Dois meses sem uma mulher foi o limite para Doca: arrumou uma amante, mulher de um vigia noturno. Tinham encontros todas as noite, na casa dela. Ele esperava as crianças dormirem e, pra não fazer barulho e correr o risco de acordar alguém, saia e chegava em casa empurrando a moto.

Grande idéia essa do Doca! O plano era perfeito, as crianças tinham sono pesado, mas (olha aí o imponderável!) a família tinha uma vizinha (sempre há uma vizinha pra atrapalhar ou salvar a nossa vida). E ela ligou para Hilda.

A mulher enfurecida voltou no dia seguinte pra sua cidade, sem contar pra ninguém (só a vizinha sabia). Até comprou uma passagem de avião à prestação. Passou o dia todo na vizinha, escondida. Ouviu o marido brigando para os meninos irem logo pra cama. Viu as luzes do quarto dos garotos se apagarem. Viu seu marido empurrando a moto da garagem sorrateiramente. E estava lá, na sala, quando ele voltou de madrugada, quase amanhecendo. Foi um Deus nos acuda!

Pra encurtar a história, até levar a mulher pra conhecer a amante ele foi obrigado. Depois da fúria, Hilda, de verdade, se divertia com a covardia do marido. E aí veio a idéia da machadinha.

Por isso que Hilda mantém até hoje a bichinha guardada, embrulhada no pano de pratos, no meio de suas calcinhas. Quando a coisa aperta, ela só fala: "Olha, Doca, que um dia eu ainda vou usar essa machadinha!"

segunda-feira, julho 10, 2006

Se encolhendo

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Ele acordou naquela manhã e não quis levantar da cama. Dormir já tinha sido um sacrifício. O barulho da chuva... Ele sempre adorou dormir com o barulho da chuva, trovões ao longe, o cobertor quente. Porém, daquela vez, ouvir a chuva batendo na sua calha foi como ouvir marteladas que o impediam de relaxar. Onde ela estava?

A chuva insistente tinha decidido não parar e ele dormiu com seus pesadelos de sempre. Monstros que o alcançavam. Corrida por um mundo escuro e negro onde ele sempre escorregava. E, no final, a solidão doendo na alma. Mesmo quando estava acompanhado, ele sentia que acordava solitário, transpiração fria, respiração ofegante. Aquilo sempre se repetia.

Naquela manhã só incomum por causa da chuva que não parava, ele se encolheu ainda mais debaixo do cobertor, apertou seu travesseiro e quis voltar a ser criança. Criança, achou, não pensaria nela. Mas não conseguia ser criança. Sentia como homem que era. Pensar naquela mulher era parte da sua rotina. Acordar com ela todo dia, dirigir a ela seu primeiro pensamento era o seu tormento. Tormento que ele adorava e cultivava. Porque era tudo o que lhe tinha sobrado dela.

Com a chuva, porém, tudo era mais doloroso. Ele suportava a lembrança na rotina, mas a chuva lhe trazia um desejo por algo que não se completou. Uma culpa sem sentido já que nada acontece fora de sua época. Mas era como se ele já a tivesse perdido. Onde estaria aquela mulher?

sábado, julho 08, 2006

Não se assuste com o que escrevo

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Nunca se assuste com o que eu escrevo
Eu não escrevo para te impressionar

Escrevo pra desabafar
Escrevo pra não esquecer
Escrevo o que já vi e muito do que já ouvi
Escrevo o que invento
Escrevo o que sinto

Não escrevo pra irritar
Não escrevo pra provocar
Não escrevo pra te expor
Não escrevo pra me auto-afirmar

Talvez escreva pra te alertar
Talvez escreva pra me alertar

Porque quando coloco as letras na tela muito do que sai é o que eu também preciso saber

Outro dia disseram algo como "baixa a bola, oh poço de sabedoria!"

Não me ofendi, mas não tenho a intenção de saber mais que ninguém
Só escrevo o que percebo e o que a minha intuição me diz

E, daí, escorregar isso da ponta dos dedos pro papel parece inevitável
Necessário até
Impossível de brecar

Comecei. Não consigo e não quero mais parar

sexta-feira, julho 07, 2006

Pasta suspensa

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Como tua secretária
Eu te coloquei num envelope pardo
E te arquivei

Te depositei naquele arquivo cinza
Móvel enorme de aço, de gavetas gigantes
Emperradas e barulhentas

Te pus numa pasta suspensa
Mas não te inventei um título
E nem te lacrei

Quem sabe um dia
Te consulto de novo
E te desarquivo de vez

terça-feira, julho 04, 2006

Descobrindo a roda

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Seu sorriso maroto me acorda todas as manhãs
O cheiro incomoda, mas não importa. Ele desaparece

Encolhe suas pernas e encaixa seus joelhos no meu ventre
Enrolamos mãos e braços e tentamos não misturar nossos hálitos

Cochilamos, acordamos, cochilamos de novo

Isso tudo é como uma brincadeira

Você é a parte mais importante de mim
É a melhor coisa que tenho
É o calor que não quero perder

Chora de manha, me olha de lado, finge dores e problemas
Fala verdades absolutas
Descobre a roda todo dia
É personagem de histórias fantásticas

Você é minha vida

Te beijo sem parar e você ri de dar gosto
Pede cócegas, manda em tudo, desorganiza o mundo

Me beija escondido enquanto finjo que durmo
Me leva até o carro e faz setas para eu estacionar

Estou a seus pés, mas sei que te controlo
Está em meu colo, mas sei que um dia partirá

Mas estaremos juntas até a vida
Sabemos porque não cabemos dentro nós

Somos maior que nós mesmas e ninguém, ninguém, nos poupará

segunda-feira, julho 03, 2006

Vamos reinventar

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É possível reinventar o amor? Estou convencida que sim.
Ainda não sei de que forma, de que jeito, com qual técnica, mas me custa o ceticismo. Não sei ser incrédula. O otimismo é a minha marca.
A vida sem paixão não me basta mais.
Por isso, prefiro apostar na reinvenção do sentimento para não perdê-lo.

Hoje li Carpinejar. Talvez por isso tenha me convencido de vez. A dúvida que ainda pairava no ar se esvaneceu. Ele escreve sobre o amor:
"É uma encruzilhada colocar a casa para fora da boca. Abrir-se. Expor-se de tal modo que não se pode retornar ao que julgávamos nossa vida, ao que acreditávamos nosso lar, ao que confiávamos como nossas convicções e nossa ordem. Como confessar uma paixão e depois fingir que isso não mexeu com a gente e retomar o trabalho e a disciplina dos dias como se fosse comum?"

É impossível fingir. Por isso, só resta reinventar. Aceitar que a mudança é definitiva e continuar. Usar essa energia mágica que esquenta e esfria o coração a cada décimo de segundo e trabalhar.
Saber que o amor não nos pertence, mas também não pertence ao outro. Portanto, não pode ficar enclausurado no peito da gente, sem destino, sufocado. Tem que vazar, mostrar sua alegria, mostrar sua forma de ser.

É essa a minha disposição.
E também é a minha esperança. Esperança que também tinha de ser sua.

Talvez, reinventado, o sentimento possa também se reencontrar. Em outro lugar


domingo, julho 02, 2006

Número alto ou número baixo

"Vam'bora seu Benê!"

Tenho saudades do seu Benê. Motorista do Diário do Grande ABC, conhecia tudo na periférica Mauá. Qualquer rua, de qualquer bairro. Tinha sido motorista da Eletropaulo, levava a equipe para instalar os postes de iluminação nos confins da região. "Vocês querem ir na rua em número alto ou número baixo?" Era a pergunta clássica que fazia pra gente, a reduzida equipe móvel da sucursal, no início dos 90: eu, Chico e Anahi. Ele queria saber por qual ponta da rua devia chegar. Pra gente era o máximo: nos bairros de Mauá as ruas eram todas tortas, tinham normalmente surgido de um loteamento clandestino, sem planejamento... Como o cara sabia só pelo nome por qual lado devia chegar???!!!

É que ele conhecida tudo por lá. Quando a gente estava de saco cheio, era só falar: "Seu Benê, vamos passear". Ele nos mostrava os lugares mais bucólicos de Mauá, pedaços com cara de sítio, serra, lindo mesmo. Era difícil acreditar porque estávamos em Mauá.

Seu Benê era um cara incomum. Meio sábio, meio pai, companheiro acima de tudo. Sempre contava com algum constrangimento que já tinha sido "muito errado nesta vida". Nada demais, na verdade: tomou porres homéricos, chegou de quatro em casa várias vezes, fez a mãe chorar um bocado, quebrou corações. Mas era um cara "redimido". Era um homem apaixonado. A mulher dele, acho que chamava-se Lídia, era o seu grande amor. A mulher que o tirou "daquela vida". Tinha filhos que pareciam seus netos e era mesmo um homem feliz.

Não sei ao certo em que ano seu Bebê ficou doente. Acho que teve gota. Já não estava mais no Diário. Fui visitá-lo no hospital, ele havia perdido uma perna e chorava. "Como eu vou fazer Vivi? Meu filho está com vergonha!" O moleque tinha uns 12 anos. Mas não estava com vergonha. Estava arrasado com a doença do pai. Dias depois seu Benê morreu. Grande perda, seu Benê. Bons tempos, seu Benê.