domingo, março 26, 2006

Na beira do rio

Essa semana que passou, por uma daquelas coincidências da vida, me senti perto da morte duas vezes em um mesmo dia e pelo mesmo motivo. Não que ela tivesse me ameaçado de fato. Mas é a imaginação, a insegurança e o medo que nos faz senti-la por perto.

Foi na segunda-feira. A primeira vez veio num pesadelo. Eu dirigia na Avenida dos Estados, meu caminho diário para o trabalho, quando por impaciência resolvi ultrapassar o carro da frente. A falta de paciência é o meu ponto fraco, onde a vida mais me testa. Por mais que eu queira tudo com urgência, tenho sempre a impressão que a vida trabalha muito devagar comigo.

Então, fui tentar ultrapassar o carro da frente, meu carro se precipitou para ao rio e voou sobre ele. Via o rio podre embaixo de mim e eu, desesperada, tentando virar o carro para a direita, como se ele fosse um avião, mesmo sabendo que minha imprudência faria eu me esburrachar sobre outro carro.

Era como se o sonho me mostrasse que, com a minha pressa para coisas da vida, eu estava prestes a cair no esgoto, morrer e matar (Nossa!!! Como fui dramática agora!!! mas não vou apagar o já escrito não...). Minha alma, então, literalmente caiu no meu corpo, que já nem respirava na cama de tanto pavor. Acordei num susto. Eram umas 3h da manhã. Suava frio e dormir de novo foi um sacrifício.

A lembrança do pesadelo me acompanhou durante todo o dia. Coisa difícil. Sonhos normalmente não me abalam. Mas esse... À noite, uma tempestade caiu na cidade. Lembrei da madrugada, do pesadelo, das enchentes do Tamanduateí e resolvi ser prudente. Esperei. Sai do jornal bem tarde e segui meu caminho.

Em Santo André, o chuva voltou a apertar, mas achei que estava tudo bem. De repente, na mesma beira do Tamanduateí, percebi que estava no meio da água. Um carro passou ao lado e aquele aguaceiro fedendo esgoto me cobriu até o teto. Há tempos não passava tanto medo real.

Foi só então que olhei para o rio. Ele estava no limite do transbordamento. Acho que rezei por todos os deuses, santos e anjos. Se transbordasse, eu não conseguiria rodar. A água (jogada pelos carros que passavam ao meu lado) ainda me cobriu mais duas vezes. A cada vez era como se eu estive dentro de uma onda. Quando saí daquele trecho, fiquei imaginando que o cheiro de esgoto ia ficar no carro o resto da vida. Mas não ficou. A chuva lavou antes mesmo de eu chegar em casa.

Sempre me perguntam porque insisto no caminho na beira do rio. Amigos e parentes preferem a Anchieta ou até mesmo o centro de São Caetano. Eu continuo a insistir na feia Avenida dos Estados. Conheço cada um de seus buracos. Mesmo com a chuva, não gosto de fazer outro caminho.

Acho que é o rio. Segui-lo me faz bem. Ele hoje é um esgotão, eu sei, todos sabem, mas acho que, numa emergência, posso pegar uma transversal à direita e me safar. A Anchieta me parece um deserto se tiver que parar no acostamento. São Caetano é como um cenário. Também evito cruzar a Heliópolis, quando lembro que foi lá que passei o primeiro arrastão de minha vida.

Ultimamente, de tanto que insistem, até tenho testado outros caminhos. Outro dia, peguei a esburacaba Presidente Wilson e depois a nova avenida, que cruza a abandonada indústria Matarazzo. É como cruzar uma cidade fantasma. E, no final, a gente cai de novo na Avenida dos Estados, onde eu me localizo, sem medo.

sexta-feira, março 24, 2006

E é sexta-feira...

A sexta-feira normalmente é o dia mais feliz para as pessoas normais, trabalhadores que esperam com ansiedade o fim de semana de lazer, descanso e prazeres. Mas, no meu caso, é o pior dos dias. Tento manter meu bom humor, mas juro que é um esforço enorme.
Vítima desse infeliz rodízio de carros implantado pela Prefeitura de São Paulo, eu acabo madrugando no jornal mesmo sem necessidade. Para não levar uma multa daquelas, acordo às 5h, saio de casa às 6h e antes das 7h estou aqui, tomando pingado e comendo um pão com manteiga no boteco. Tenho sono o dia inteiro e, no fim da tarde, me obrigo a fazer tudo correndo pra não levar uma multa na volta pra casa. E, quando saio do jornal, tenho a impressão que estão todos me olhando com ar crítico e pensando assim: "Hum, como vai embora cedo, aquela folgada..." Quando estou muito atrasada, ainda fico desviando dos pontos onde, sei, estão os malditos marronzinhos... Pareço uma ladra em fuga. Há humor que aguente isso?
Só que essa sexta-feira é a pior do mês. Ela ainda é véspera de plantão.
Plantão é o osso dessa minha profissão. Amanhã e depois são os dias que eu vou roer meu osso. E depois trabalhar mais uma semana inteira, me arrastando todas as manhãs, até o outra sexta de sono, correria, e etc e tal...
Escrever esse monte de bobagens já um sinal de mau humor. Mas é só um desabafo... Que sempre faz bem... no fim das contas...

terça-feira, março 21, 2006

A Ex-Mulher

(um conto, ou uma tentativa de fazer...)

Ela tinha cabelos claros, no tom dourado. E olhos também claros, talvez azuis, talvez verdes, talvez cor de mel, não sei bem. Acho que tinham o mesmo tom do cabelo. Mas lembro que eram grandes, sempre esbugalhados e brilhantes quando falava, e isso foi o que mais me impressionou nela. A vi apenas três vezes e sempre foi em seu olhar que eu me fixei. Na primeira vez, o olhar era de submissão. Na segunda, de desespero. E na terceira, vinha carregado de uma frieza, quase uma ameaça.

Foi no intervalo entre o nosso primeiro e segundo encontros que ela de boa vontade se apresentou a mim: “Oi, eu sou a Maria. Sou a ex-mulher do João”. Ela falou aquilo como se fosse uma sina, uma profissão: “Eu sou a ex-mulher!” E ao mesmo tempo com tanta naturalidade que eu me assustei. Porque ao atribuir a si mesma a posição de “ex-mulher” ela se destituía do que dela era mais importante, o ser mulher. Era como se ela só existisse a partir dele, através dele, daquele homem que ela imaginava ainda amar. E, por ela, eu senti pena, o pior dos sentimentos.

Não que a culpa fosse dela. Em se tratando de casais, não há culpas individuais. Eu, sem querer, sem ao menos conhecê-los direito, conhecia bem a sua história. Não que eu fizesse questão de saber. Na verdade, nunca procurei saber. Mas tenho um curioso dom: fico sempre sabendo do que não procuro saber. Não preciso especular, não preciso perguntar. Às vezes demora dias, às vezes anos, mas cedo ou tarde as pessoas vêm a mim e me contam, como se eu fosse alguém para quem fosse sempre interessante contar sobre a própria vida e a vida alheia. E outras vezes nem preciso que me contem. Como uma visionária, eu olho, observo por instantes e simplesmente sei.

Então, sabia da história deles. Sabia que um dia se amaram, não por uma paixão avassaladora, mas se amaram. Soube que ela tinha por ele grande admiração e ele, por ela, carinho e respeito. Mas como os amores feitos de admiração, carinho e respeito são mornos, um dia ele, que era mais consciente de suas vontades, decidiu partir. E ela não se conformou. E, mesmo não morando mais na mesma casa, continuou a cuidar dele. Levava suas contas ao banco para pagar, orientava a empregada, checava a sua geladeira, comprava até as suas cuecas. E ele, por compaixão, permitia. E ela não perdia as esperanças de um dia voltar a dividir com ele a cama. E ele tinha a certeza que isso nunca mais aconteceria.

(Abro um parênteses aqui para dizer que nem a nossa Língua Pátria a ajudava. Me explico: minha amiga não tinha muitas opções no nosso Português. Aqui, é comum entre os casados chamarem-se de marido e mulher. Se uma mulher falar “esse é meu homem” isso é tido como vulgar. Ela o chama de marido, o que é mais formal. A formalidade da palavra na nossa sociedade com certeza sumiria se todos soubessem que em latim marido (maritus) significa “o macho”, mas quase ninguém sabe disso. E, apesar de sermos a maioria cristãos, acaba pesando sobre nós o significado da tradução hebraica, onde a palavra marido (baal) se aproxima mais dos substantivos “dono” e “patrão”. E o mais revoltante é que é natural um homem chamar a sua companheira de “minha mulher”, o que significa dizer aquela que me pertence. Nos tempos de hoje, chamá-la de esposa, ou a que desposo, é que é antiquado.)

E pensando nela, e no significado das palavras, tentei me colocar no lugar de Maria. Eu definitivamente nunca me apresentaria como “a ex-mulher”. Acho que diria algo assim: “Oi, prazer, eu sou Maria. Ele, João, é meu ex-marido”. Falaria do jeito certo para que percebessem que eu não sou anexa a ele. E quem me ouvisse entenderia que aquele tinha sido sim o meu homem, que eu o amei e que, no fundo, de alguma forma, ainda o amava, mas de uma maneira leve, afetuosa. Que tinha sido sua mulher, mas que por conta do passar da vida a vontade de ficar junto esfumaçou-se. Que ele percebeu primeiro e eu, não tendo como negar, mesmo com dor, cedi. E que, agora também livre, estou pronta para procurar outros amores. Sem ser submissa, sem desespero e sem o medo que acompanha sempre quem ameaça.

sábado, março 18, 2006

Viva a banda Calypso!

E abaixo aos sutiãs que aparecem!!!

Conhecemos hoje o RBD. Conhecemos mesmo, eu, a Bia e o Mauro. Festa de aniversário de criança, perifa, o repertório é sempre suspeito. Oscilou entre Xuxa, RBD, Gino & Geno, Teodoro & Sampaio e Banda Calypso.
Mas fomos apresentados ao RBD, ou Rebeldes, garotos protagonistas da novelinha do SBT, que involuntariamente mataram três pisoteados há mais ou menos um mês num shopping perto da Represa do Guarapiranga.
A aniversariante ficou super feliz de ter ganho o DVD de presente. Ai meu Deus, vamos ouvir!! A meninada parou para assistir, dançar, babar nas garotas e garotos (mexicanos???) de cabelos espetados e pintados (um deles parecia o Pequeno Príncipe, pode??).
A Bia foi junto (Que medo!!!). Parou na frente do telão, mas atrás da fila de meninas que sabia a dança na ponta dos pés. Mas não conseguia dançar. Nunca tinha visto aquilo. Isso é uma vitória para nós, pais talvez caretas, mas que tentam ser "politicamente corretos" e "culturalmente acadêmicos", mas que no limite são censores mesmo. No meio da segunda dança, largou aquilo e foi pro parquinho. Ela é meu orgulho!!!
Assistindo, passei a entender um pouco da moda adolescente. As três meninas do RBD usavam microssaia com bota e bustiê. Nada muito diferente do que as chacretes faziam há 30 anos.
Mas o que mais me chamou a atenção foi o bustiê com sutiã à vista.
Sempre achei um horror essa moda que mostra o sutiã. Mesmo que ele tenha a mesma cor berrante da blusinha, sempre achei um horror. Cresci sofrendo para esconder o sutiã. A alça de silicone foi o máximo que se inventou para se manter o sutiã escondido (tá certo que pra muita menina ficava pior a emenda que o soneto: o silicone apertado na carne fazia ela parecer mais com um salsicha amarrada...).
Aí, nos últimos tempos, vejo uma avalanche de sutiãs berrantes, aparecendo pra fora das camisetas cavadas. No começo achei que era a libertação feminina, mas aos poucos comecei a pensar que aquilo era mesmo puro mau gosto. A culpa é do RBD, só pode ser!!! As três gurias, mesmo com o bustiê (ou top, como preferirem), fazem questão de mostrar seus sutiãs, cruzando as costas, que podiam estar livres, lindas, bem mais sensuais. Que moda mais sem classe!!!
Das opções da noite, prefiro mesmo o Calypso. A bota pra cima do joelho com minissaia a la chacrete é a mesma, mas pelo menos o bustiê é amarrado, a cava nos seios é bondosa, até apetitosa, fica muito mais bonito. ... E não usam o sutiã... E é nacional! Do Pára (sai do eixo Rio-São Paulo-Salvador) e é dançante, rebolante, como a antiga lambada (lembro de eu e o Rai dançando lambada nas arquibancadas do Pacaembu durante um comício do Lula, na primeira campanha: Lulalá...que saudades...da dança, me entendam).
Foi ótima a noite. Aniversário na perifa (com churrasco duro, chopps quente e salgadinho frito e frio) é sempre uma delícia....

Avulsa (essa é da Dani)

Da Dani Bela, da Dani Girl, da doce Dani.
Adorei a poesia. Volte a escrever.

Beijo grande

"Não estou avulsa à sua vida,
nem vim anexo a seus planos,
não sou mais uma ferida,
nem sou mais um desengano.

Não me compare ao passado,
nem diga que não tem futuro,
não sou o caminho errado,
nem sou um tiro no escuro.

Não mintas para ti mesmo,
nem digas que foste enganado,
não sou o fim do sossego,
nem sou as águas passadas.

Não gosto do teu sofrimento,
nem quero que fiques calado,
não sou a perda de tempo,
nem sou o mesmo que nada.

Não gosto de ver teu fracasso,
nem quero que fiques no chão,
não sou apenas o abraço,
nem sou mais uma paixão.

Não quero ser a culpada,
nem vou ser o caso antigo,
não sou mais um dos pecados,
nem sou apenas amiga.

Não quero acabar novamente,
nem tenho vontade demais,
não sou seu erro recente,
nem sou seu sonho fugaz.

Se sou o passado,
estou reciclada,
estou corrigida,
estou melhorada."

quarta-feira, março 15, 2006

Será que passa?

Vou escrever um pouco sobre a tristeza para ver se ela passa. Essa tristeza que não tem fim e que nos últimos dias tem tomado conta de cada um dos meus pensamentos, do meu corpo e esfriado meu coração.
Eu não gosto de tristeza. Também não gosto de ser triste e odeio quem vive amargurado pelos cantos da vida, choramingando por tudo e colocando a culpa em todos. Gosto de ver a vida com bom humor, mesmo que sarcástico. Olhar o lado engraçado, insólito das situações, é o meu passatempo predileto. Mas há dias, períodos, que nem isso me envolve.
Aí fico tentando, como umTitã, achar o nome e o motivo disso: cansaço, TPM, idade, saudade, desânimo, raiva, gripe, desapego, desilusão, culpa.... É tudo isso e nada disso. Me dou um pito porque já sou crescidinha para essas bobagens. Parece tudo muito adolescente. Mas, racionalmente, não dá pra entender o que se passa. E será que passa?
Sem respostas, penso que talvez curtir a tristeza até ela se esvair seja a melhor saída. Deixar ela tomar conta de mim, me abraçar por inteira e esperar que ela, naturalmente, vá embora. Me entregar a ela e chorar todas as manhãs e todas as noites até secar, sem autopiedade, pode ser um bom remédio.
E, enquanto o dia corre, eu continuo a treinar a piada, a boa sacada, o olhar os outros com bons olhos e a crença de que, tudo, tudo mesmo, vai melhorar.

sexta-feira, março 10, 2006

Desculpe,

.... mas quem é raso não me aguenta!

Como água...

Um texto é como água.
Às vezes, chega inundando a gente, de uma vez só. Um temporal de palavras, fluindo fácil fácil da ponta dos dedos. É tão urgente que qualquer pedaço de papel serve, porque o texto tem que encontrar o seu lugar rápido. Em minutos ele está lá, sem esforço.
Outras vezes, como no estio, o texto demora muito pra chegar. Vem a conta-gotas, palavra por palavra... É como uma chuva fraca, que cai a cada hora do dia, mas não se forma como um temporal. Refresca mas não encharca. Com dificuldade construo uma frase, depois mudo, corto, refaço, até encontrar a minha perfeição.
Mas pior é quando o texto não vem. É uma sensação de secura, de sede mesmo. O ar parece que pára, o cérebro parece que não raciocina, a confusão se generaliza, as palavras forçadas não se encontram... É como se o mundo estivesse se transformando em um deserto.

quinta-feira, março 09, 2006

Mulheres e Homens

O texto não é meu (quem dera eu escrevesse assim!!). Mas ganhei de uma amiga dias atrás. O que é bom, a gente compartilha...

"Ninguém pensa senão em mulheres e homens, a totalidade do dia é um trâmite que se detém num dado momento para permitir pensar neles, o propósito da cessação do trabalho ou do estudo não é senão começar a pensar neles, mesmo quando estamos com eles pensamos neles, pelo menos eu. Os parênteses não são eles, mas as aulas e as investigações, as leituras e os escritos, as conferências e as cerimónias, as ceias e as reuniões, as finanças e as politiquices, a globalidade daquilo que consideramos ser aqui a actividade. A actividade produtiva, a que proporciona dinheiro e segurança e apreço e nos permite viver, a que faz com que uma cidade ou um país andem e estejam organizados. A que depois nos permite dedicarmo-nos a pensar neles com toda a intensidade.
Até neste país é assim, contrariamente às nossas pretensões e fama, contrariamente àquilo que nós próprios gostamos de crer. O parêntese é isso, e não o contrário. Tudo o que se faz, tudo o que se pensa, todo o resto que se pensa e maquina é um meio de pensar neles. Mesmo as guerras são travadas para poder voltar a pensar, para renovar esse pensamento fixo dos nossos homens e das nossas mulheres, naqueles que já foram nossos ou poderiam ser, naqueles que já conhecemos e naqueles que nunca chegaremos a conhecer, naqueles que foram jovens e naqueles que hão-de sê-lo, naqueles que já estiveram nas nossas camas e naqueles que nunca passarão por elas...."


Javier Marías, in 'Todas as Almas'


terça-feira, março 07, 2006

Cheiro de biscoito

Uma das poucas vantagens de acordar às 5h30 da manhã para trabalhar é ver o céu com aquela cor rosada e brilhante da aurora. Na Vila Pires, onde moro, o amanhecer é acompanhado pelo cheiro de biscoito ainda no forno... É uma delícia! Me sinto privilegiada.
Há uma fábrica de biscoitos perto de casa, não sei direito onde é e nem quero saber. O mesmo cheiro quente às vezes se espalha pela região em outras horas do dia, mas de manhãzinha, para mim, o efeito é meio mágico.
Na minha fantasia matinal, meio infantil eu sei, o melhor é imaginar que tudo faz parte do nascer do sol... Como se a aurora, além de brilho e cor, deixasse também no ar o perfume doce de biscoito assado, ainda quente, pronto para ir a mesa...

segunda-feira, março 06, 2006

Palavras...

palavras, palavras... onde estão vocês???

domingo, março 05, 2006

Eu-mãe e o guardião

Que mãe quero ser pra Bia? Essa é uma pergunta que sempre me faço.

Hoje fiquei nos observando, a mim e a ela, uma curtindo a outra, sob o sol, na piscina. A Bia é medrosa, não gosta de ficar só, mas eu não sinto que devo protegê-la o tempo todo. Gosto de contar pra ela como as coisas ocorrem e deixá-la curtir, se arriscar. É uma missão difícil. Sempre digo: "Vá, Bia, não tenha medo. Qualquer problema, eu estou por aqui, mas você tem que ir só." Não importa com quantas pessoas a gente conviva, com quantos a gente converse ou quantos saibam dos nossos segredos... as decisões mais importantes da vida são sempre solitárias.

Enquanto ela se emancipava um pouco hoje, se misturava naquela multidão de crianças, eu ficava de longe, olhando, preferindo o sol à água. De vez em quando, a perdia no meio de dezenas de meninas como ela, de rabo de cavalo e tic-tac na cabeça. Um frio invadia a minha barriga, mas aí ela reaperecia como uma mágica, pulando, brincando, mergulhando, gargalhando, abraçando uma amiguinha...

De vez em quando, era ela que começava a me procurar. Olhava no mesmo sentido em que me deixou, tentando achar o meu perfil. Eu percebia, acenava, ela sorria, às vezes corria pra me dar e receber um beijo, às vezes voltava à sua brincadeira, nem aí pra mim. O importante, eu pensava, é que ela sabia que eu estaria lá, pra dar aquela força, quando e se necessário.

Olhando lá pra dentro, acho que é isso que eu venho buscando... Alguém que me mostre o início do caminho, me dê o estímulo para trilhá-lo e me observe seguindo, independente, respirando livre. Saber que há alguém para eu voltar e dar ou receber um beijo, sem o compromisso de dar e receber o beijo. Um guardião, que me conheça tão bem que eu nem precise falar e nem pedir para ser ouvida. Que mesmo que eu não o veja, saiba que está lá. Que se orgulhe do meu esforço. Alguém como um espelho, onde eu possa me olhar e ver o meu reflexo, sem culpa. Deus? Anjo? Não, nada disso. Alguém tão humano quanto eu.

Na piscina, tentando encorajar a Bia a enfrentar seus medos, enfrentei eu o toboágua: um tubo longo e alto, sem um fim visível, branco como o excesso de luz, por onde você escorrega a uma velocidade indescritível. Ao escorregar, o tempo parece que pára. A única reação possível é o grito. Um mergulho violento e, por reflexo, uma gargalhada de perder o fôlego. Fiquei pensando que o toboágua pode parecer um sonho ruim para uma criança medrosa. Mas é também uma metáfora da boa vida: longa, imprevisível, misteriosa, mas sempre, sempre muito boa no final. É só ter coragem para correr o risco.

sexta-feira, março 03, 2006

A morte no piscinão

Ler blogs dos outros anda me inspirando. Outro dia li um texto ótimo do Desgraceira. Histórias de um cemitério. Repórteres do mundo-cão sempre têm histórias boas de cemitérios. Lá vai a minha:

Uma tarde tive que fazer a morte de dois garotos na obra de um piscinão do Maluf. Morreram afogados num dia de muito calor. Aconteceu lá pros lados do Jardim Peri, um lugar muito feio e pobre na Zona Norte de São Paulo. Depois do piscinão do Pacaembu, fazer esse tipo de reservatório pela cidade virou uma questão de honra para o turco.

Cheguei na rua onde moravam os meninos. A contragosto, bati na casa de um deles. Ninguém atendeu. Um vizinho qualquer me disse que o corpo já estava no velório. Que droga! Não queria passar por isso!! Ir no enterro pra conseguir a porcaria da história!! Aí, bati na casa do outro, uns 20 metros a frente. A situação não poderia ser pior. Um vizinho disse que a família já tinha até viajado. Sem alternativa, fui para o cemitério.

Chegando, fui me aproximando devagar da capela, onde rolava o velório. De longe, observei que boa parte das mulheres que estava lá usava saias longas e cabelos compridos. Já vislumbrei o inferno. Além de tudo, eram crentes, aquele tipo de gente que sai correndo atrás de jornalista xingando: 'vade retro satanás'.

Do lado de fora da capela, perguntei para um homem com cara amistosa quem era da família. Ele me levou até a porta da capela e me mostrou, de longe, perto do caixão, a mãe (uma mulher de coque e saia) e o pai (um jovem senhor barrigudo, em mangas de camisa).

Me aproximei do pai. Ele parecia mais tranqüilo. Do lado do caixão, depois de dar uma olhada no garoto morto, me identifiquei. Contei, cínica, aquela velha história que queria escrever no jornal o que tinha acontecido com o filho dele para denunciar o absurdo de existir um piscinão onde crianças podiam morrer. Pra minha surpresa, ele me pediu com muita humildade: "A senhora pode esperar um pouco. Eu quero falar. Não quero que aconteça isso com mais ninguém". Eu fiquei em estado de choque e muito envergonhada. Disse, quase gaguejando: "Lógico, espero o enterro. A gente conversa no final"....

E eu fiquei lá, com minha consciência pesada, assistindo de camarote o sofrimento daquelas pessoas. Não tive coragem de ir para o carro, com o fotógrafo e o motorista. Num certo momento, não aguentei e chorei com toda aquela dor. Quando acabou o enterro, me aproximei do pai de novo e ele perguntou se eu podia ir pra casa dele. Ele contaria tudo lá. Juro que fiquei com um medo egoísta de ele desistir de conversar comigo. A mulher (sempre as mulheres) poderia fazer ele desistir. Ainda não tinha a história e seria um absurdo voltar pra redação sem nada pra escrever (como jornalista é fdp!!!).

Voltei pra aquela casa naquela rua pobre e feia. Chegando lá, na calçada, ele e a mulher começaram a me contar... que o lugar do piscinão era uma antiga fazenda, que antes tinha um laguinho onde todas as crianças do bairro brincavam, que começou a obra e nada foi cercado, que não havia sinalização de perigo e nem segurança no lugar, já abandonado. Conforme eles iam falando, as pessoas da rua iam se aproximando da gente, a maioria crianças, amigos dos dois meninos afogados.

Aí, ele propõe: "A senhora pode ir até lá? Eu mostro que não tem segurança nem aviso". Mas ir como? "É pertinho. A gente vai a pé. A senhora pode ir de carro". Eu disse: "Não. Eu vou a pé com vocês". O carro com o fotógrafo nos seguiu.

Conforme andávamos, mais pessoas e principalmente crianças se juntavam a nós, seguindo para o lugar da tragédia. Parecia uma cena de filme. Aquele multidão de pobres, vestidos com shorts e chinelos, se formando enquanto andávamos à frente.

Era mesmo muito perto. Virando a primeira esquina à esquerda da rua dos meninos já começava uma estrada de terra e podíamos ver uma mata. Depois do paredão de árvores, chegamos num descampado, uma descidona e logo abaixo, no meio de um aterro, o lago do piscinão inacabado. Em volta, vários alojamentos de operários, vazios. Maluf tinha parado de pagar a obra e a empreiteira tinha dado no pé. Nenhuma placa, nenhuma cerca, nenhum segurança.

O pai se aproximou do lago e me mostrou onde os meninos costumavam mergulhar, contou como os corpos tinham sido encontrados, me apresentou o rapaz que tentou salvá-los... Sempre abraçado ou de mãos dadas com a mulher. De repente, ele diz a ela: "Olha, Bem, a camiseta dele ainda está aqui". Aquilo parecia um trapo. Estava lá, na beira da lagoa, molhada e suja de barro. Mas ele a reconheceu. A mãe pegou como se fosse uma relíquia. Mas, ainda anestesiada por aquele impacto da morte que acabou de ocorrer, lidou com aquilo como se fosse normal. Um peça de roupa do filho que ela iria pegar, lavar e passar pra depois usar de novo. Nenhuma lágrima. Nenhum grito. Nenhum lamento. Isso me assustou. Eles falavam comigo como se o menino fosse aparecer lá a qualquer momento.

Depois da cena da camiseta, aquilo tudo já era demais pra mim. Já tinha a história, a foto da família sofredora no local (isso é o máximo pra uma edição bem popular), a reprodução do moleque. O jornal não podia querer mais que isso. Cara de pau, ainda pedi ajuda ao casal para conseguir conversar com a segunda família e a foto do segundo moleque. Mas eles tinham ido mesmo viajar. Achei que bastava. Entrei no carro e fui embora, meio orgulhosa por ter me saído tão bem daquela encrenca. Mas, o que ficou mesmo foi uma sensação esquisita no coração, um amargo na boca e uma admiração enorme por aquelas pessoas tão simples, tão crédulas e, naquele momento, tão fortes.

Coisas da Bia


Já deitada na cama, pronta pra dormir, a Bia me contou ontem que, na escola, desenhou a Heloisa deitada embaixo da terra. "Não consegui fazer ela feliz, mamãe, porque ela estava na terra. Aí, desenhei ela triste e dei uns retoques (!!!)".

Levei um susto na hora. A Bia desenhando coisas mórbidas??? Fiquei imaginando a cara da professora quando ela contou o que desenhava... E ri... Me disse ainda que desenha a irmã feliz quando a faz de pé, em cima da terra. Mas que deitada, na terra, não deu pra fazer um sorriso. Me tranquilizei quando ela garantiu que não ficou triste com o desenho. Apenas desenhou. Concluo que a vida devia ser simples como as saídas inventadas pelas crianças.

Acho que Bia começa a entender o que é a morte. Nunca escondi dela a existência da morte e da irmã com a qual ela não conviveu. São só fotos e histórias que ela vê e escuta. Gosto de ouvi-la. Me conta que sonha com a irmã constantemente. Para a Bia, a Heloisa é um tipo de anjo com o qual ela brinca enquanto dorme. As duas ficam de mãos dadas, pulam de nuvem em nuvem e tomam conta uma da outra para não se machucarem. Para a Bia, não é uma lembrança, mas uma amiga invisível, com a qual ela sempre pode contar.

No fundo, a invejo. Como é bom ter amigos invisíveis...