terça-feira, outubro 31, 2006

Esquina


O barulho parecia ensurdecedor. Mas eram só os seus ouvidos. Um caminhão, um ônibus, carros passando pela avenida, movimentos banais como o cotidiano, e ela empurrando o carrinho de sua bebê. Pequena criança.

Decidira dar um passeio com a menina - primeiro passeio - empurrando o carrinho por aquelas calçadas desniveladas e inadequadas. Ela avança insistente até a esquina. Lá, em um metro quadrado, ela se perde.

O que lhe tomou? Que sensação foi aquela? O barulho de dentro era mais forte que o barulho de fora. Ela enxergava os movimentos editados em takes rápidos. Tudo superlativo, como se ninguém a visse e ela percebesse tudo. E se sentiu profundamente só.

No carrinho, a nenê não chorava, mas a olhava de um jeito estranho, como uma estrangeira pedindo auxílio. Ela não conseguiu avançar. Dava passos desconexos, olhava para o alto e para os lados como uma alucinada e tudo que conseguiu fazer foi recuar e fugir empurrando às pressas o carrinho de volta pelo caminho.

Por que aquela sensação? Aquilo era um assombro que durou eternos segundos, e era muito maior que ela. E olha que naquele momento ela ainda não sabia... Ela realmente não imaginava. Mas, talvez, ao seu coração, a mensagem já estivesse dada.

O que viria?
Viria o mal congênito,
o medo,
a dúvida,
a luta,
a dor,
os vômitos,
os olhares de pena,
os exames,
as febres,
os cavalos,
os aparelhos,
os parabéns em meio a lágrimas,
a esperança
e a morte*.

Mas naquele dia, naquela esquina, no meio da fumaça, ela ainda não sabia.

Depois da morte veio o trabalho, o trabalho e o trabalho. E a obrigação auto-imposta de consolar os outros. Ela não podia esmorecer. Não podia fraquejar. Porque, se ela caísse, nada sobraria atrás de si, acreditava.

E ela continuou. Não parou nunca. Nem outra filha, maior dádiva, a fez parar. Tudo tem que estar certo, no seu lugar, contas em dia, geladeira cheia, casa limpa, sem respirar, não olhar pros lados, continuar. A perfeição é a meta sem que se saiba.

Não há poesia, não há música, não há leveza, nem amargor, apenas o que há e o que tem que se cumprir. Até com uma certa alegria, arremedo de felicidade.
Mas ela não é assim. Ela se fez assim.
Até que a vida a chacoalha e lhe coloca de volta na terra. E ela retorna para ela. Para o seu interior. E, lá dentro, ela encontra com o desconhecido, se impressiona com o seu próprio tamanho, vislumbra possibilidades múltiplas e percebe que o peso pode ser menor.
Só há que virar a chave.
É difícil recomeçar, ela pensa. É difícil enfrentar a pior das feras.


*A dor do amor-negado é tão forte quanto a dor da morte.

quinta-feira, outubro 26, 2006

"Come on baby, light my fire"

Nada como ouvir boa música logo cedinho....

quarta-feira, outubro 25, 2006

Viagem na Copa do Mundo

O muro quebrado continua lá. Já são mais de quatro anos. Depois da suave curva à direita, é aquela destruição em formato de triângulo na mureta caiada que separa a pista do Tamanduateí. Que desgraça que é a vida! Tão frágil, tão fugidia.

O garoto se achava o máximo. Carrão novo, shorts, camiseta, naquele junho com sol de rachar como quase sempre ocorre no inverno paulistano. Tudo é sem sentido, esquisito mesmo, até o tempo.

Jogo do Brasil na Copa do Mundo. Ele passa na casa do amigo, lá na Mooca ó meu, e avisa que a galera vai se encontrar num clube lá na Zona Sul, ou na Zona Norte, não importa, mas tem telão, tá calor e eu tô com o carro que o meu pai me deu.

O rapaz segue com um amigo pela avenida do Estado. Em outro carro, vai o outro amigo com uma namorada. Todos querem chegar rápido. Domingão, solzão, jogo e eu quero mais é beber.

Mas o garotão também adora correr. O selo símbolo de rachas diz pro bom entendedor de que praia ele é. E ele acelera.

Emparelhado com o carro de um estranho, só pra provocar, ele continua. Mas não percebe a curva. E a curva suave de repente fecha mais. Ele perde o controle.

O carro atravessa uma, duas, todas as faixas e bate na mureta branquinha, recentemente caiada. Capota. Se arrasta por mais uns cem metros de ponta cabeça até parar por falta de mais impulso.

O carona, amarrado com o cinto, fica firme no banco e tem só escoriações. É levado pelo resgate. O garotão de shorts e camiseta, que nunca acreditou no fim da vida, tem a cabeça esfregada no asfalto junto com a lataria do carro. Não há lugar sem sangue no exíguo espaço da máquina de quatro rodas.

Carro, corpo, rosto, tudo é irreconhecível. Então o corpo, que não serve mais pra nada, fica lá no meio fio. Depois, assim como a lataria do que era o carro, é arrastado pra calçada, porque o trânsito tem que fluir.

Quando chego, ainda afastada, percebo a mãe sendo retirada da cena. Melhor assim. Não preciso falar com ela. A mulher quis ir lá, não acreditaria se não visse com os próprios olhos. É o início do fim de sua própria vida que está jogado naquela calçada toda quebrada e suja.

Meu motorista logo dá um grito: o que meu sobrinho está fazendo ali? É o amigo que estava no outro carro com a namorada. Tio, eu vinha logo atrás, não era racha, não sei o que aconteceu. Seu moleque, podia ser você, seu irresponsável! Cadê seu pai? Eu vou chamar sua mãe e quero ver você pegar o carro de novo!

O muro quebrado continua lá. Já são mais de quatro anos. Já passou a outra Copa. O Brasil não foi campeão. Mas o muro, do mesmo jeito, ainda está lá. Uma marca de triângulo mal feito na minha memória.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Transparente

É!!!
Eu devo estar cinza mesmo.
Mas o meu coração está verde e meus olhos estão vermelhos.
Minha gargarta está roxa, meu fígado amarelo e minha língua está turquesa.
Estou toda colorida, de tons berrantes e, dependendo do olhar, até sinistros.
É que às vezes eu sou assim: só vejo o escuro do poço na minha frente!
São breves estes momentos.
Esse é o defeito da minha personalidade.
Minha alma ainda é translúcida, quase sempre totalmente transparente.
Pena!
Devia ser negra.
E intransponível.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Eu aceito

Agora que passou da meia-noite eu posso dizer que aceito ser sua mãe.
Serei uma mãe precoce, você sabe, mas, no futuro, a gente poderá, sim, ir juntas para algumas baladas. Só não vou me drogar tanto, mas talvez você, em algum dia, tenha que me carregar pra casa. Prepara-se.
Nos primeiros dias da gestação, não se entristeça, mas eu vou chorar muito de desespero. Se tivesse 30 já choraria, imagine, então, aos 14?
Mas, enquanto a barriga crescer, eu vou colocar uma música legal pra você escutar e já ir se acostumando com os sons de qualidade. Talvez alguma canção de ninar, talvez algo de Toquinho, sei lá, ainda vou escolher, mas você terá uma música pra não se esquecer.
Vou me surpreender e bordar lembrancinhas em ponto-cruz e um quadro com o seu nome pra colocar na porta do quarto do hospital. Tentarei por insistência ter um parto normal, mas depois cederei aos apelos do médico, dizendo que você corre riscos, e permitirei a cesariana
Depois que nascer, vou te amamentar até os 2 pra você não correr riscos. Vou sempre te fazer ninar no colo, tenha certeza, cantando baixinho aquela mesma canção que escolhi lá atrás.
Mas, não pense que sua vida será só moleza. Você não terá tudo o que quiser e nem na hora que quiser. Quanto mais espernear, e mais se jogar no chão, mais dura será sua vida ao meu lado. Vamos brigar a partir do momento em que você começar a andar, mas nunca vamos dormir sem nos falar, sem trocar beijos, sem uma história contada na cama.
Também não vai comer só tranqueiras. Não sei como farei isso, porque também quero me entupir de doces, mas juro que resistirei.
Quando entrar na escola, estarei ao seu lado na hora das lições de casa, irei nas reuniões chatas de pais e mestres e babarei nas festinhas de final de ano, com você fantasiada de flor, de borboleta, de coelho, dançando muito sem jeito.
Construiremos uma certa cumplicidade, eu sei, mas acho que na adolescência vou me atrapalhar com você. Como não brigar, como não querer que você faça o que eu acho certo, como confiar no mundo e te deixar seguir o seu caminho? Como evitar que você caia nas mesmas ciladas em que eu caí?
É! Não vai ter jeito.
Na idade adulta você vai ter que me perdoar por todas as discussões feias que teremos durante a sua adolescência, eu sei. Mas vou preferir pagar o seu terapeuta, com quem no futuro você vai falar sobre nossa tumultuada relação, do que te perder para sempre.

sábado, outubro 07, 2006

A boa amante

Ela me recebe quando chego
Nas madrugadas, em silêncio
Por vezes cinza, fria e úmida
Outras cheia de lua
Mas sempre a me envolver

Seus espaços são espaços que eu percorro como um quintal
...conhecido quintal

Vejo em cada ponto uma história
Procuro em cada esquina um alguém

Meu exemplo de paraíso
Sem flores
Sem mar
Nem areia

Meu esconderijo, meu porto

Velejo até aqui e ancoro meu corpo desenganado
Às vezes realizado
Destroçado
Às vezes aliviado
Outras arquejado

As ruas dessa cidade me conhecem, me amparam e não me abandonam
Sou eu aqui, e aqui me reconheço

domingo, outubro 01, 2006

Sem convicção nem humor

Já não é fácil manter o bom humor numa manhã de domingo de eleição, friozinho, depois de trabalhar mais de 12 horas na véspera por causa de um avião que caiu na selva amazônica. Mas, vamos lá, notícia sempre é estimulante, o resultado final foi bom e o melhor é se animar pra ir votar antes de ir pra redação. Mas ter que aguentar um babaca que esconde o rosto sob um capacete pedindo pra você votar no Clodovil já é demais: "Vota no Clodovil que tudo melhora". "Ooohh cidadão, porque você não vai pra puta que o pariu que eu não vou votar em maluco. E, quer saber, boca de urna é crime eleitoral, seu cretino."
Desabafo feito, vamos lá encarar os tucanos da minha seção eleitoral. Mas, surpresa boa: não tinha fila. E, no final, votar no meu antigo colégio, no meu antigo bairro, sempre é divertido, meio nostálgico. Logo de cara, encontro o velho vizinho, mais velho do que nunca, agora falando dos netos. Depois, o mesário é colega de infância: "Você não é irmã do Gerson? Eu sou o irmão do Osmar?". Papo de xarope, o mesmo estado meu.
Me animo: até que terminei o voto mais cedo do que calculei e sigo pro jornal tentando desviar o dial da CBN, já que de notícia eu estou farta e vou me fartar ainda mais durante este dia. Mas sigo com aquela sensação esquisita logo depois traduzida pelo João Ubaldo: o voto este ano está sem entusiasmo, sem convicção, sem esperança. Todo mundo que conheço está assim: voto pelo hábito, com raiva, meio por obrigação, no menos ruim. Antes do apertar o sim verde, xinguei a foto do infeliz, esperando que ele escute e páre de fazer bobagens.
Mas suspeito que hoje e os próximos 4 anos vão ser bem amargos.