quinta-feira, fevereiro 07, 2008

A Dite e os sapatos

A Dite estava linda como nunca. Me surpreendi quando soube que estava com 31, porque quando me lembro dela sempre a vejo mais velha, sofrida, gorda. Mas, hoje, ela estava linda, como uma diva da década de 50, uma atriz de cinema: a pele extremamente branca, o sorriso aberto, com dentes perfeitos, o cabelo dourado e cheio de cachos. Parecia um anjo. Não havia registro do seu mau humor, sua marca registrada de antes.
Todos se surpreenderam. E eu a abracei... que saudades... Eu não sabia que estava com tanta saudades dela. Não imaginava o quanto!
Era surpreendente porque todos a vimos morta. Nós vimos como ela foi definhando e como estava envelhecida quando se foi. Mas, agora, ela tinha 31 e dizia quando via alguém: não, eu não morri. E aquilo era tão natural. Não era nada assustador. Todos estavam felizes, em confraternização. E, para cada um que chegava, eu, como uma criança da casa, fazia questão de mostrar: olha, olha quem está aqui! E novamente expressões de surpresas, abraços, felicidade.

Eu não sei como cheguei naquele lugar. Quando vi, estava naquela casa, que era pequena, mas estava cheia de gente conhecida. Mas tinha que partir e, de novo (essa sensação sempre vem) estava sem sapatos. Alguém na casa me deu dois pares: um sapato lilás claro, meio transparente, bico fino e um pequeno salto; outro preto, completamente baixo. Ambos eram de plástico. Mesmo assim, sai descalça, com os dois pares em uma sacola.

Na rua, de noite, olhei o trânsito, que era frenético. Via luzes dos carros que riscavam a escuridão. Duas grandes avenidas se encontravam no ponto onde eu estava, uma praça na parte baixa de dois morros. Mas a minha noção de sentido estava completamente perdida e não sabia para qual lado seguir: direita ou esquerda. Tinha que pegar um ônibus, ir para o Centro, mas os ônibus subiam e desciam as ruas, que eram ladeiras, e eu não conseguia me mexer.

Aquele lugar, eu sabia, já havia sido uma favela enorme - Mauá agora está bonita, eu pensava, mas ainda assim é Mauá, é assustadora. Foi aí que encontrei a garota. Ela não parava de falar, e me deu o sentido: o Centro é para lá (à esquerda), pegue tal ônibus. Perdi ainda um ônibus e, no próximo, ela subiu comigo, sempre falando, falando, que conhecia não sei quem no jornal, que estudava, que estava voltando da escola, que isso, que aquilo.

Foi só então, no ônibus, que decidi vestir os sapatos. Mas, na confusão de subir, entrar no ônibus, um pé do par preto se perdeu, caiu no chão, eu ainda olhei pra trás, tentei encontrar, mas não consegui. Então, coloquei o lilás. Mas era o preto que queria. Esse sapato lilás com essa meia soquete não combina, ainda pensei. Deve ser por isso que está meio apertado. Pensei em voltar pra, procurar o sapato que ficou pra trás, certamente caído na sarjeta, mas não dava mais.

E a menina não parava de falar, enquanto o ônibus seguia e eu observava meu pé com meias soquete no sapato lilás e transparente.

Um comentário:

Anônimo disse...

oi, coração!
gostei do ritmo do seu sonho ;)

um poema roubado por aí,
prah gente se lembrar do
vinho do sábado
e considerar a cerveja de amanhã...


Escolho os meus amigos não pela pele ou por outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero o meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero-os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho os meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta.
Não quero só o ombro ou o colo, quero também a sua maior alegria.
Amigo que não ri connosco não sabe sofrer connosco.
Os meus amigos são todos assim: metade disparate, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade a sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos, nem chatos Quero-os metade infância e outra metade velhice.
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto;
e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois vendo-os loucos e santos, tolos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

bjs/san