Nem sei bem que horas são. Mais de uma, talvez duas, um silêncio, nenhum cheiro, uma luz acesa no corredor. Entrei quieta, a cabeça rodando, a bixiga explodindo. Na minha cama, ela dorme com o pai. Eles nem percebem que cheguei. Quero ir ao banheiro, estou com sede, o estômago está virado, mas não vou vomitar. Não é pra tanto. Sem acender a luz, entro no quarto pé ante pé para pegar o pijama, quero uma cama, mesmo que não seja a minha. Deito no quarto cor de rosa de criança, na minha velha cama de solteira, e tento colocar em ordem a noite.
A festa foi boa. Cheguei só, de táxi, minha amiga na porta à minha espera, vamos beber que é por isso que estou aqui. Conhecidos, beijos, oi, tudo bem, me dá cá um abraço, cadê a cerveja?
No pátio aberto, quem está faz apenas o social. Já sabe tudo o que vai rolar lá dentro, o que vai ser dito e o porquê. Lá dentro, um monte de gente, muitos interessados, outros quase dormindo, o pessoal que foi mesmo trabalhar.
Olha aqui: esta é minha amiga, jornalista. É, eu sou, mas estou de férias. Onde é que vende a cerveja? Tem trocado? Nossa, quanta gente! Tudo bem, daqui a pouco isso aqui acaba e gente estica. Você que ir pra onde? Tanto faz, hoje eu estou por sua conta. Viu aquele cara? Ele é interessante. Não é o seu tipo? É, não achei, não. Meu Deus, você por aqui? Você vê, por mais que queira sair do ABC, acabo voltando pra cá. Que saudades. Olha, essa aqui é minha amiga, minha "cumadi". Então é você, sempre quis te conhecer. Estou com fome, tem churrasco aqui? Lá fora, vamos lá.
Vou comprar mais uma e elas somem. Quando vejo, estão as três, num canto em pé, conversando um monte, em uma rodinha bem feminina.
Pergunta: o que falam mulheres maduras reunidas numa rodinha quando se encontram?
De seus homens, claro.
Ainda está com ele? Sim, é meu terceiro marido. Não sabia que tinha tido um segundo. Ah, eu lembro agora, ele era o homem mais lindo da redação. Lindo mais cruel, querida, muito cruel. E você, há quase 20 anos com o seu. É, pra você ver. Mas não quero mais dar pra ele. É, daí é difícil. Eu quebrei o cabaço e fui num sexshop comprar umas coisinhas. Mas meu namorado se nega a usar... Que babaca ele, não? Se fosse um homem mais velho usava. E eu que separei ontem e faço 40 amanhã. Estou arrasada... Aquele ali é um escroto, falso que só. Chega. Vamos? Um beijo, vamos sair mais dia desses, parabéns, coragem. O celular tocando na bolsa.
Cadê meu celular? Atende aí? Já estamos aqui, vocês não vêm?
No boteco tem mais mulher madura, com homens maduro, outros nem tantos, meninas, bichas e tudo o mais. Mais cerveja.
Me dá um croquete, vamos sentar lá fora, arruma umas mesas. Já estou aqui, sentada, esperando vocês. Tem algo melhor pra comer aqui? Come a batata assada que é mais saudável. Então dá uma, com berinjela que eu adoro.
Pergunta: o que falam mulheres maduras com homens maduros reunidos numa mesa de bar?
Das outras mulheres maduras que não estão lá. E falam também de seus ex-maridos, e filhos, e namorados. E dão pitaco na vida de quem está na mesa.
Não dá pra entender o que aquela lá tem que atrai tanto homem. Porque ela é muito feia, é vulgar, ninguém gosta dela. É, mas o fulano disse que até aquele outro, aquele bonitão meio gordo, pagava um pau por ela. Não acredito, ele parece tão inteligente. E ela mesma me disse que o cara era pegajoso, mas pagava algumas contas pra ela, então, tudo bem, ela aguentava ele. Outro dia, nem te conto, sumiu num bar e quando voltou disse que tinha ido dar uma. Ali mesmo, no meio do bar? Não sei, acho que sim. O maior bafão. Conheço você de uma festa, sou amigo do seu amigo. E ele, é viado ou não? Não sei. Já viu ele com mulher. Nunca, mas nem com homem. É, mas o cara é muito boa gente. E vocês, são skinheads? Carecas do ABC? Pô, não ofende. Esse aí, querida, não combina com você. O outro lá é melhor. Sempre fui assim, louca, batalhei pra criar meus filhos. Vamo'mbora que meus filhos não param de ligar. Pede a conta, eu deixo vinte, tchau.
Deitada em casa tudo isso vem sem muita ordem, até que eu durmo. Durmo? Não. Eu acordo de hora em hora, a madrugada não acaba. Levanto, bebo água, vou ao banheiro, deito de novo. Com frio, me cubro pra pouco depois chutar o edredon. Cinco horas, cinco e meia, sei lá, o despertador toca. Ele acorda pra ir trabalhar. Não tem a curiosidade de olhar no outro quarto, será que ela está aí? Com certeza está, as botas estão no corredor, a roupa jogada no banheiro. Ele assume o banheiro e eu continuo deitada. Ele sai do banheiro e eu não aguento, levanto, vou pra cozinha.
Bom dia. Bom dia. Fez café? Fiz.
Uma xícara, duas. Vou comer torrada com geléia e manteiga, tudo diet, tudo light. Vou esquentar o leite, tomar com café, perdi o sono. Ele se toma banho, se troca, eu ainda na cozinha, comendo e lendo o Unidade. Li inteirinho. Vou ao banheiro, palavras cruzadas. O dia ainda escuro. Ele sai e o sono não vem. Meu Deus, essa noite, essa balada não acaba. Tá, vou ler mais, na sala agora, escolho um livro velho, leio a dedicatória "Nós não queremos mais o paraíso, mas continuamos dispostos a continuar reencarnando", escolho um conto. Deu errado. Não veio o sono. Só mais e mais excitação. Preciso dormir, vou tomar mais café com leite, e mais um, e mais torrada. Vou deitar com ela, na minha cama, eu a abraço de costas e consigo dormir. São sete e meia.
:-/
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