quinta-feira, maio 11, 2006

Verão Inverno

Eles se conheceram no réveillon, o melhor réveillon de suas vidas. Corpos morenos do Verão, roupas brancas, Copacabana inundada de gente, velas e flores para Iemanjá. Depois, festa com gente descolada. Ela o viu enquanto ele já a examinava. Ela tão linda, com um decote tão bondoso e uma saia tão curta, que sabia: era a caça e também caçava. Ele, voraz, só se aproximou e falou. O jogo estava ganho.

Fim de festa, ela nem se importou com seus amigos. Foi com ele pra praia, molhar os pés no amanhecer. Seguiram pra algum apartamento, que ela nunca saberia dizer onde era, entraram em um quarto e se afundaram no colchão que estava jogado no chão...

No meio da manhã, ela pegou suas coisas e saiu, como uma anônima, mas levou o número de um telefone marcado em um pedaço de guardanapo de papel. Pensava: "Ligo pra ele depois". Chegou de táxi em São Clemente, na casa dos amigos, com as sandálias na mão. Feliz, dormiu e acordou debaixo do sol. Aí veio a notícia: "Você não tem mais nenhum dia aqui."

Atordoada, percebeu que o guardanapo se perdera, talvez no táxi, talvez no banheiro, talvez na sua bolsa. Queria vê-lo mais uma vez. A amiga ligou, então, para uma conhecida, que ligou para uma prima, que também estava na festa, e conhecia o dono da casa, que sabia qual de seus camaradas havia levado lá aquele cara, que entrou sem convite. Uma hora depois, seu telefone tocou. "Vamos sair hoje mais uma vez?"

Foram jantar. Passearam pelas calçadas da Lagoa, de mãos dadas, como velhos namorados, ficaram mais uma noite e fizeram todas as promessas que não devem ser feitas nunca a ninguém. E na manhã do dia seguinte, ela partiu. Mas ele não sumiu.

Telefonemas, e-mails, cartas, cartões, tudo dele a alcançava. Nos primeiros meses, ele saia do Rio para visitá-la em São Paulo e os dois curtiam a vida em quartos de luxo nos hotéis de várias estrelas da cidade.

No Carnaval, ele alugou uma quitinete em Copacabana. Levou os dois filhos: era um casal. A menina tinha 15 e o garoto, 5. Passaram, felizes, o feriadão, passeando entre travestis e transformistas na orla da praia, dançando em bailes chiques, comendo com as crianças em lanchonetes festivas, mas dormindo amontoados na falta de espaço.

Na Quaresma, porém, a vida começou a mudar. Porque a Quaresma trás o Outono e no Outono o tempo esfria e as folhas e as máscaras começam a cair. Algo não ia bem. Os contatos eram estranhos. Na Páscoa, ela mentiu para os pais e viajou de novo para o Rio. Lá, nada de intimidades em hotéis simpáticos ou aps emprestados. Ficaram no quartinho de empregada que ele alugava no apartamento de um velho casal, do lado de lá do túnel, muito longe da praia.

Como sempre, colchão no chão. Mas, desta vez, ele deitou na cama.

Foi aí que ele lhe deu a sua facada: "Se você mente para os seus como vou ter certeza que não mente pra mim?". O ataque enjoou o seu estômago, amargou a sua boca e ela chorou sangue de raiva. A desconfiança é péssima companhia do amor. Ela voltou pra casa, desanimada, mas ainda com esperança de que tudo não passava de um dia ruim.

A vida seguiu e ele voltou para São Paulo, para a casa de sua mãe. Começaram a se ver em hotéizinhos modestos e decadentes do Centro da cidade. Ele havia perdido o emprego no Rio e ela decidira mudar de emprego em São Paulo. Ele não gostou. Ela nem ligou. A opinião de seus parceiros nunca a fez parar. Foi por essa época que ela começou a organizar sua festa de aniversário. Comemoraria os 22. Ele já tinha 30.

Festa no sábado. Ela morava no Tatuapé. Ele no Capão. Apareceu com um amigo esquisito num Corcel preto. Ela não gostou. Mas foi simpático e, ela pensou, tudo ia dar certo. A festa correu bem, amigos e mais amigos, ele não se enturmou e partiu cedo: "Nos vemos amanhã".

O dia importante era o amanhã. Domingo. Era o dia do aniversário dela. Ligou pra ele: "Vamos sair?". "Não, vem pra minha casa". Ela não sabia onde ele morava. Ele explicou e ela pegou o ônibus e depois o outro ônibus, até o ponto final, no bairro humilde da Zona Sul.

Já era Inverno. Pouca gente na rua e o frio congelava os ossos de todos. Na pequena casa, a mãe fazia coxinhas pra fora, enquanto ele, dois irmãos e as duas crianças se amontoavam embaixo de cobertores velhos em dois sofás comprados nas Casas Bahia. Todos assistiam Silvio Santos. Ela entrou e ninguém se mexeu. Nem ele.

Ficou lá, na cozinha com a velha senhora, ele vendo TV e a tarde passando. E ela se perguntando o que fazia lá!

Quase noite, ela decidiu partir. E pediu: "Você me leva até o terminal?" Ela tinha medo daquele lugar onde estava, do lugar onde ele morava. Não queria sair de lá sozinha. Mal-humorado, ele trocou de roupa e foi com ela. Quase uma hora até o terminal, os dois nos últimos lugares do ônibus que sacolejava em ruas esburacadas. Eles conversavam, mas não se entendiam.

No terminal, ele já grosseiro, ela olhou aquele chuvisco cinza, e finalmente percebeu que se cansou de ter esperança. Olhou pra ele com um certo prazer... Ali chegara a sua vez de dar o troco. Ia dar-lhe uma bela facada. Estavam no meio da plataforma. Ela tinha cara de anjo e ele não esperava isso dela. O acertou no meio do peito e disse "foda-se", virou as costas e o largou lá, deitado no chão que tanto gostava, sangrando.

Nunca mais soube dele. Ele nunca mais soube dela. Os dois pegaram seus ônibus e choraram até chegar em suas casas. E depois, simplesmente, se esqueceram.

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