sábado, abril 01, 2006

O esconderijo perfeito

A Bia sempre me faz voltar ao passado. Me faz voltar a uma época da qual eu lembro pouco, não porque não queira, mas porque perdi o estímulo de ficar lembrando. Mas ela, a pequena tirana de 5 anos, sempre quer que eu volte: “Mãe, me conta história de quando você era criança”, ela pede, derretida, pra eu contar pra ela a minha história, que é a sua própria história, tão singela, sem nada demais, como tantas outras histórias de crianças nesse mundo. Mas essa é a nossa, o que a faz única e importante.

Outro dia escarafunchei a memória para contar-lhe o pouco que guardei da minha avó. Minha avó que morreu quando eu tinha pouco mais de 4, ela não tinha nem 60, mas de quem eu tenho as mais doces lembranças. Ela era miúda, mais ainda que eu, diz meu pai, mas pra minha visão infantil ela era muito grande. Fecho os olhos e sinto ainda seu cheiro acre, a vejo pela cozinha mexendo nas panelas, sinto o gosto de sua macarronada com carne moída e me vejo encantada com a cor de seu arroz com colorau.

Me colocava em cima de um cadeira pra consertar minhas roupas (eu ficava da altura dela) e dizia “Quieta, menina, senão eu te espeto”, enquanto ajeitava a barra no meu vestido que nunca era novo, era sempre reformado de alguma menina mais velha... Lembro de seu cabelo armado e cinzento, de suas mãos morenas e enrugadas, dos seus óculos, da sua saia abaixo do joelho, também cinza....

Mas lembro principalmente de vê-la chegando em minha casa. E é a história predileta da Bia, que morre de rir quando eu conto, talvez porque nessa hora ela imagine que é exatamente como eu era.

Morávamos em um sobradinho no fim de uma vila particular na Água Rasa (nome sempre intrigante e sonoro pra mim... Água Rasa... Rasa por quê? Qual riacho deveria ser esse, em que canal de esgoto deve ter se transformado...).

Meu quarto tinha a janela pra frente, meu castelo, de onde eu via a ruazinha de paralelepípedos que levava até o pátio final da vila. Daquela janela eu via aquela figura miúda e gigante chegando, seguida pelo moleque de cabelos raspados na nuca, como se usava naqueles tempo, bermuda nos joelhos, camisa branca e óculos de aro preto, meu tio Carlinhos, irmão caçula do meu pai, que era o irmão mais velho.

Só aquela visão já me excitava, me enchia de felicidade. Vê-la da janela, preparar-lhe uma surpresa.... A avó vinha nos ver, eu e meu irmão mais velho. Mas hoje acho que vinha principalmente me ver, a única menina daquela mulher que tinha tido cinco filhos, todos homens, e que tinha tido o infortúnio de perder a primeira vida feminina com seu sangue (minha irmã), morta na mão de um médico famoso, mas inábil.

Aquela bebê que morreu poderia ter permitido a ela, mulher-avó, realizar seu provável sonho de costurar vestidinhos com rendas e comprar bonecas e exercitar mimos delicados. Porque os meninos deviam ser criados com mais dureza e as meninas podiam ser sempre mais delicadas. A menina aliviaria a aspereza de sua vida.

Mas a morte inesperada adiou seu provável sonho em seis anos, até que eu nasci, num mês de muito frio. E fui mesmo muito mimada na infância, por avós, tios e tias... Sempre por ser mulher e caçula e miúda e rouca e por andar na ponta dos pés. Cada ano, enquanto eu crescia, sempre havia um novo motivo para um pouco mais de mimo....

Mas era a minha avó chegando naquela viela e eu me escondia no melhor lugar da casa: embaixo do lençol. É engraçado como acreditava que desaparecia. As crianças acreditam. A Bia repete a brincadeira e acredita... Mesmo sob o lençol, a cama, pra criança, é lisa, sem rugas ou obstáculos. E eu ficava na expectativa ouvindo seus passos subirem a escada, e minha avó entrava no quarto, e perguntava por mim, e alguém dizia que eu tinha saído, e ela se sentava sobre mim, e eu ria, e dizia “Vó, estou aqui”, e ela se fingia de surpresa e ria, e nos abraçávamos e beijávamos, e, e, e.

Não sei por quê, mas dia desses contando essa história pra Bia não consegui deixar de chorar (choro agora ao escrevê-la). Deitadas na cama, a Bia gargalhando e as minhas lágrimas escorrendo sem parar, sem que eu conseguisse evitar... “Por que você está chorando, mãe?”. “Acho que é saudades da minha avó, Bia”.

Ela não disse mais nada, não perguntou mais nada, só ficou me olhando, com aqueles olhinhos de jabuticaba. E eu achei bom. Não saberia explicar se é saudades da avó, bisavó dela, ou daquela menina que tinha talvez 3 anos e que acreditava que o lençol sobre ela era o esconderijo perfeito. Porque os esconderijos perfeitos não existem. E também não existe mais a menina. Existe só alguém que eu sempre achei que conhecia, mas que me surpreende a cada dia.

Um comentário:

Anônimo disse...

Uau!! E eu lendo tb choro! Adoro seu jeito de escrever! Fala à alma, lá onde somos todos parecidos... Continue, se é bom p/ vc, melhor ainda p/ nós. Muito bom ser sua amiga. Te admiro cd vez mais. Beijos, Del.