sexta-feira, março 03, 2006

A morte no piscinão

Ler blogs dos outros anda me inspirando. Outro dia li um texto ótimo do Desgraceira. Histórias de um cemitério. Repórteres do mundo-cão sempre têm histórias boas de cemitérios. Lá vai a minha:

Uma tarde tive que fazer a morte de dois garotos na obra de um piscinão do Maluf. Morreram afogados num dia de muito calor. Aconteceu lá pros lados do Jardim Peri, um lugar muito feio e pobre na Zona Norte de São Paulo. Depois do piscinão do Pacaembu, fazer esse tipo de reservatório pela cidade virou uma questão de honra para o turco.

Cheguei na rua onde moravam os meninos. A contragosto, bati na casa de um deles. Ninguém atendeu. Um vizinho qualquer me disse que o corpo já estava no velório. Que droga! Não queria passar por isso!! Ir no enterro pra conseguir a porcaria da história!! Aí, bati na casa do outro, uns 20 metros a frente. A situação não poderia ser pior. Um vizinho disse que a família já tinha até viajado. Sem alternativa, fui para o cemitério.

Chegando, fui me aproximando devagar da capela, onde rolava o velório. De longe, observei que boa parte das mulheres que estava lá usava saias longas e cabelos compridos. Já vislumbrei o inferno. Além de tudo, eram crentes, aquele tipo de gente que sai correndo atrás de jornalista xingando: 'vade retro satanás'.

Do lado de fora da capela, perguntei para um homem com cara amistosa quem era da família. Ele me levou até a porta da capela e me mostrou, de longe, perto do caixão, a mãe (uma mulher de coque e saia) e o pai (um jovem senhor barrigudo, em mangas de camisa).

Me aproximei do pai. Ele parecia mais tranqüilo. Do lado do caixão, depois de dar uma olhada no garoto morto, me identifiquei. Contei, cínica, aquela velha história que queria escrever no jornal o que tinha acontecido com o filho dele para denunciar o absurdo de existir um piscinão onde crianças podiam morrer. Pra minha surpresa, ele me pediu com muita humildade: "A senhora pode esperar um pouco. Eu quero falar. Não quero que aconteça isso com mais ninguém". Eu fiquei em estado de choque e muito envergonhada. Disse, quase gaguejando: "Lógico, espero o enterro. A gente conversa no final"....

E eu fiquei lá, com minha consciência pesada, assistindo de camarote o sofrimento daquelas pessoas. Não tive coragem de ir para o carro, com o fotógrafo e o motorista. Num certo momento, não aguentei e chorei com toda aquela dor. Quando acabou o enterro, me aproximei do pai de novo e ele perguntou se eu podia ir pra casa dele. Ele contaria tudo lá. Juro que fiquei com um medo egoísta de ele desistir de conversar comigo. A mulher (sempre as mulheres) poderia fazer ele desistir. Ainda não tinha a história e seria um absurdo voltar pra redação sem nada pra escrever (como jornalista é fdp!!!).

Voltei pra aquela casa naquela rua pobre e feia. Chegando lá, na calçada, ele e a mulher começaram a me contar... que o lugar do piscinão era uma antiga fazenda, que antes tinha um laguinho onde todas as crianças do bairro brincavam, que começou a obra e nada foi cercado, que não havia sinalização de perigo e nem segurança no lugar, já abandonado. Conforme eles iam falando, as pessoas da rua iam se aproximando da gente, a maioria crianças, amigos dos dois meninos afogados.

Aí, ele propõe: "A senhora pode ir até lá? Eu mostro que não tem segurança nem aviso". Mas ir como? "É pertinho. A gente vai a pé. A senhora pode ir de carro". Eu disse: "Não. Eu vou a pé com vocês". O carro com o fotógrafo nos seguiu.

Conforme andávamos, mais pessoas e principalmente crianças se juntavam a nós, seguindo para o lugar da tragédia. Parecia uma cena de filme. Aquele multidão de pobres, vestidos com shorts e chinelos, se formando enquanto andávamos à frente.

Era mesmo muito perto. Virando a primeira esquina à esquerda da rua dos meninos já começava uma estrada de terra e podíamos ver uma mata. Depois do paredão de árvores, chegamos num descampado, uma descidona e logo abaixo, no meio de um aterro, o lago do piscinão inacabado. Em volta, vários alojamentos de operários, vazios. Maluf tinha parado de pagar a obra e a empreiteira tinha dado no pé. Nenhuma placa, nenhuma cerca, nenhum segurança.

O pai se aproximou do lago e me mostrou onde os meninos costumavam mergulhar, contou como os corpos tinham sido encontrados, me apresentou o rapaz que tentou salvá-los... Sempre abraçado ou de mãos dadas com a mulher. De repente, ele diz a ela: "Olha, Bem, a camiseta dele ainda está aqui". Aquilo parecia um trapo. Estava lá, na beira da lagoa, molhada e suja de barro. Mas ele a reconheceu. A mãe pegou como se fosse uma relíquia. Mas, ainda anestesiada por aquele impacto da morte que acabou de ocorrer, lidou com aquilo como se fosse normal. Um peça de roupa do filho que ela iria pegar, lavar e passar pra depois usar de novo. Nenhuma lágrima. Nenhum grito. Nenhum lamento. Isso me assustou. Eles falavam comigo como se o menino fosse aparecer lá a qualquer momento.

Depois da cena da camiseta, aquilo tudo já era demais pra mim. Já tinha a história, a foto da família sofredora no local (isso é o máximo pra uma edição bem popular), a reprodução do moleque. O jornal não podia querer mais que isso. Cara de pau, ainda pedi ajuda ao casal para conseguir conversar com a segunda família e a foto do segundo moleque. Mas eles tinham ido mesmo viajar. Achei que bastava. Entrei no carro e fui embora, meio orgulhosa por ter me saído tão bem daquela encrenca. Mas, o que ficou mesmo foi uma sensação esquisita no coração, um amargo na boca e uma admiração enorme por aquelas pessoas tão simples, tão crédulas e, naquele momento, tão fortes.

2 comentários:

Anônimo disse...

realmente mente quem diz que jornalista é só fdp!
o que não são capazes de fazer por uma matéria! ou, às vezes o que precisam fazer para ter uma.
crem deus padre!

Anônimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado